No oceano de filmes da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, muita gente escolhe o que vai ver com base nas sinopses divulgadas na imprensa ou no catálogo da própria mostra. Nesse contexto uma obra como Paterson, de Jim Jarmusch, tende a ficar em segundo plano, pois não trata de nenhum “tema grandioso”, não desenvolve um entrecho espetacular, nem conta com atores famosos. É uma pequena joia escondida em meio ao brilho falso de bijuterias mais vistosas.
O encanto do filme vem justamente de sua sutileza e discrição, da capacidade de encontrar o poético no prosaico. Paterson é o nome da cidade do estado de Nova Jersey onde se passa a ação e também o prenome do protagonista (Adam Driver), lacônico motorista de ônibus que escreve poesia nas horas vagas. A narrativa se concentra em uma semana da vida desse personagem e de sua inquieta mulher (Golshifeth Farahani), dividida entre seus supostos talentos para a decoração, a culinária e a música.
Rotina e poesia
Ao longo desses sete dias nada de muito espetacular acontece. Repete-se, com ligeiras e significativas variações, a rotina de Paterson: ele acorda ao lado da mulher, ouve os sonhos que esta tem para contar, toma seu leite com sucrilhos, escuta o encarregado da garagem lamentar seus infortúnios, conduz o ônibus pelas ruas tranquilas da cidade, leva o cachorro para passear, reencontra no bar os mesmos conhecidos de sempre etc.
Mas a rotina tem seu encanto, como já sabia o mestre Ozu, e a beleza está nos detalhes, fornecidos sem estardalhaço: nas conversas entre passageiros (numa das quais ficamos sabendo do passado da cidade como berço do movimento anarquista ítalo-americano), nos versos delicados escritos por Paterson, na galeria dos grandes nomes que nasceram ou passaram por lá (William Carlos Williams, Allen Ginsberg, Lou Costello), na recorrência dos pares de gêmeos de várias idades etc.
Ainda que os poemas de Paterson tenham muito de prosa, lembram no espírito os haicais japoneses, com sua atenção ao banal, seu despojamento contemplativo, sua tentativa de captar o instante efêmero. Essa aproximação poética com o Japão se enfatiza no encontro fortuito de Paterson com um escritor japonês que, como ele, é leitor aficionado de William Carlos Williams (autor de um livro chamado Paterson).
Em meio ao alarido de guerras, crimes e desgraças diversas que povoam os filmes da mostra, Paterson, em tudo e por tudo, é um momento de silêncio reflexivo e revigorante.
Pitanga
Igualmente revigorante, mas por motivos quase opostos, é Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga. Não se trata propriamente de um documentário sobre, mas sim com Antonio Pitanga. A partir de encontros do grande ator baiano com amigos de várias épocas, o filme organiza sua trajetória, que se confunde com a do cinema brasileiro desde 1960.
Figura solar, sensual e dionisíaca, mas também de combate pela liberdade e pela afirmação do negro em nossa sociedade, Pitanga ilumina com sua presença e sua memória boa parte da cultura brasileira das últimas décadas, do cinema novo ao teatro Oficina, do candomblé às escolas de samba, do underground às telenovelas.
É difícil escolher entre diálogos tão saborosos, mas talvez o mais divertido e revelador seja entre Pitanga e Zé Celso Martinez Corrêa, pela afinidade erótico-libertária entre ambos, apesar das imensas diferenças de postura e formação. Mas a nata da nossa cultura está nessas conversas, de Caetano e Gil a Ruth de Souza, de Jards Macalé ao futebolista Claudio Adão, de Chico Buarque a mães de santo e feirantes de Salvador.
Organizado mais ou menos em blocos temáticos (a formação na Bahia, as namoradas, o cinema, o teatro, as relações com a África, a mudança para a favela carioca etc.), o filme flui com uma força e uma naturalidade irresistíveis. Para quem anda desanimado com os percalços que assolam o país, Pitanga é uma injeção de ânimo na veia.
A seguir, alguns breves comentários sobre outros filmes vistos na 40ª Mostra de São Paulo:
O apartamento
Forte candidato a ser um dos preferidos do público, o novo filme do iraniano Asghar Farhadi (de A separação) fala do estupro de uma atriz de teatro amador, casada com um professor que também atua e dirige uma encenação de A morte do caixeiro viajante. A direção de Farhadi, hábil e segura, faz emergir questões morais e políticas dolorosas, mas tende a manipular demais os sentimentos do espectador.
Poesia sem fim
A exemplo de seu longa anterior (A dança da realidade), o novo filme do chileno radicado na Europa Alejandro Jodorowsky mescla reminiscências autobiográficas com uma desbragada fantasia. Visualmente deslumbrante – e por vezes genial na imaginação cenográfica –, o filme padece entretanto de uma retórica poética um tanto gasta, uma espécie de surrealismo cansado, ao incorporar à ficção personagens reais, como os poetas Nicanor Parra, Enrique Lihn e Stella Díaz Varín.
Aranha vermelha
Uma das boas surpresas no “foco Polônia” da 40ª Mostra é Aranha vermelha, primeiro longa de ficção do diretor de fotografia Marcin Koszalka. A ação se passa em Cracóvia em 1967 e gira em torno de um rapaz, campeão de saltos ornamentais, que fica obcecado por um brutal e frio serial killer a ponto de se identificar com ele. Narrativa seca e elíptica, com ambientação noturna, andamento sóbrio, poucos diálogos e sobretudo nenhuma explicação (psicológica, sociológica), é um filme desconcertante que, em alguns momentos, remete ao Não matarás de Kieslowski. Por falar em Kieslowski, a mostra está exibindo o magnífico Decálogo do diretor polonês.
Conspiração da fé
Depois do violento, divertido e original O cidadão do ano, exibido na Mostra de 2014, o novo filme do norueguês Hans Petter Moland é uma grande decepção. É violento, mas não é divertido e muito menos original. A história de um psicopata que se passa por religioso para sequestrar e matar crianças com requintes cruéis tem todos os clichês maniqueístas e truques de manipulação do gênero, incluindo uma canhestra explicação psicológica para a patologia do criminoso. Numa aula sobre ética do cinema, valeria como contraponto simétrico ao polonês Aranha vermelha.