Para alguns, graffito, em italiano, quer dizer uma inscrição em muro público ou outro suporte não previsto para esta finalidade. Para outros, graffito vem do mineral grafite, que seria o material mais usado para a realização destas inscrições. Fica claro que, em sua origem, graffito não aponta para determinada estética/forma do resultado, mas sim para o próprio gesto ou o meio pelo qual este se opera. De modo que o graffito poderia se manifestar tanto como texto quanto como desenho, e não haveria qualquer conteúdo – louvor, crítica, ironia, demarcação de território – que condicionassse se algo é graffito ou não. Já graffiti nada mais é do que o plural de graffito.
A história do grafite (forma do português brasileiro para graffito) passa pelo Egito Antigo – onde foi encontrado em paredes de templos mortuários sagrados e pirâmides –, pelo Império Romano – alguns ainda podem ser vistos nas catacumbas de Roma –, chegando à Idade Média, à modernidade e à contemporaneidade. Ou seja, praticamente não se encontra sociedade que não tenha convivido com o grafite. Mas não precisamos ir tão longe para tentar entender a cruzada atual do recém-eleito prefeito de São Paulo, João Doria, contra o grafite.
Durante o movimento contracultural e estudantil que tomou Paris em maio de 1968, diversos muros e fachadas de instituições, como as da universidade Sorbonne, receberam inscrições caligráficas com forte caráter político-poético. Julio Cortázar, escritor argentino vivendo em Paris na época, anotou algumas dessas inscrições e as usou numa das partes do seu livro Último round – Tomo 1. Entre as páginas de Cortázar encontramos citações como “Exagerar já é um começo de invenção (inscrição na Faculdade de Letras de Paris, maio de 1968)”, “Desabotoe o cérebro tantas vezes quanto a braguilha” (Teatro Odeon, Paris)” e “Falem com seus vizinhos (Faculdade de Letras, Paris)”. Por vezes Cortázar utiliza as inscrições como uma espécie de gatilho para gerar novos textos, realizando assim um diálogo entre rua e livro, anônimo e notável, coletivo e pessoal, registro e criação. Para o autor, as inscrições pelas ruas tinham potência criativa.
Pouco depois dos acontecimentos parisienses, a prática do grafite correu o mundo e foi encontrar sua cena mais pulsante em Nova York. Realço que uso o termo “grafite” aqui à maneira estrangeira, ou seja, remetendo tanto a desenhos quanto a textos e outros tipos de inscrições no espaço público (o Brasil é o único país onde se distingue, nominalmente, grafite e pixação).
Entre finais dos anos 1960 e início dos anos 1970, o ponto mais visado por grafiteiros em Nova York eram os vagões de metrô. Os vagões ficavam estacionados numa garagem durante a noite, garagem à qual alguns grafiteiros conseguiam acesso. No dia seguinte às ações destes rapazes, os vagões corriam a cidade com seus grafites – em sua maioria pseudônimos e codinomes – expostos na lataria. O cunho poético e claramente político da Paris de 1968 não estava mais presente. Segundo Craig Castleman em The Politics of Graffiti, na Nova York de 1971 o texto “Taki 183” apareceu em tantos locais e gerou tanta curiosidade que o New York Times enviou um repórter para descobrir o significado. Taki era um garoto de dezessete anos sem nada melhor para fazer durante o verão. Menor de idade, não poderia ser preso, apenas receber um sermão, mesmo se fosse flagrado grafitando. O artigo do New York Times apresentou Taki como um garoto interessante que havia desenvolvido um hobby encantador. Resultado: uma série de jovens passou a seguir as ações de Taki, culminando na formação de toda uma geração de grafiteiros.
Como nos conta Norman Maler em The Faith of Graffiti, pouco depois a prática se tornou uma espécie de epidemia. Via-se grafite por todos os cantos da cidade. Um novo artigo em mídia impressa apareceu, desta vez contrário aos grafiteiros. Sanford Garelik, conselheiro oficial da cidade, dizia que “o grafite polui o olhar e o pensamento, e talvez seja uma das piores formas de poluição que precisamos combater”. Cidadãos foram incitados a denunciar grafiteiros e um dia a cada mês foi designado como “dia antigrafite”, durante o qual a população sairia às ruas e limparia o que as autoridades tomavam como sujeira. Um movimento bastante semelhante ao que João Doria busca motivar em São Paulo ao divulgar vídeos de si mesmo apagando grafites e convocando a população a participar desta ação. Gesto este que se choca com o da prefeitura anterior, que há apenas dois anos inaugurou um dos maiores corredores de grafite da América Latina na Avenida 23 de maio, obra que envolveu mais de 200 grafiteiros e custou cerca de 1 milhão de reais aos cofres municipais.
Voltando à Nova York de 1971, o New York Times publicou um editorial chamando atenção para a enorme quantia gasta pela prefeitura para limpar os vagões e estimulando as autoridades a banir a venda de tinta spray para menores. A partir das sugestões do conselheiro Garelik e do editorial do NYT, o prefeito John Lindsay anunciou um programa oficial antigrafite em meados de 1971. Sua proposta era a de que a polícia pudesse prender qualquer pessoa que portasse uma lata aberta de tinta spray nas dependências de um imóvel municipal. Como o comitê jurídico municipal não tocou a questão com a agilidade desejada pelo prefeito, Lindsay tomou medidas por conta própria: realizou uma cerimônia de honra para um policial que havia prendido, sozinho, treze grafiteiros no último semestre. Durante o evento o prefeito fez questão de clamar pelo apoio da população e dizer que, para ele, a escrita grafite estava relacionada a “problemas de saúde mental”. Sobre os grafiteiros – chamados tanto por Craig Castleman quanto por Norman Mailer de graffiti writers –, Lindsay disse que eram “covardes inseguros buscando reconhecimento”.
(Interessante atentar para o writers em graffiti writers. Por aqui, pouco pensamos em grafiteiros como “escritores”. Muito menos os pixadores, que nos assustam com seus pixos ilegíveis – mas, espera, o pixo é ilegível para quem? Deixando a questão legal de lado, e pensando o pixo como código, é evidente que, ao se deparar com um novo código, qualquer um precisa de disponibilidade e dedicação para ter a chance de, quem sabe, compreendê-lo.)
Back to New York: após o pronunciamento grosseiro do prefeito John Lindsay, o Conselho Municipal recebeu um relatório do Comitê de Assistência Social indicando que o o uso de canetas e tinta spray para a escrita grafite havia “alcançado proporções que exigem punições sérias para os perpetradores” e que tal degradação e o uso de “linguagem indecente” em vários textos seria “nocivo ao público geral e violador do bem-estar do povo de Nova York”. O relatório sugeria ainda que deveria ser considerado ilegal carregar uma lata de tinta spray aberta em qualquer instalação pública e que ninguém poderia escrever, pintar ou desenhar qualquer inscrição, imagem ou marca de qualquer tipo numa propriedade pública. Um grafiteiro pego em flagra deveria ser obrigado a limpar o que fez, diante de uma autoridade; as lojas que vendiam tinta spray deveriam se registrar junto ao Departamento de Polícia e manter um registro dos nomes e endereços de quem comprasse tais produtos. Está claro o que se desenrolava: forças atuavam em direções opostas, movimentando assim o que Jacques Rancière chama de “fábrica do sensível”, Nova York se encontrava em meio a uma batalha que alteraria o regime de visibilidade, e essa batalha ocorria às vistas de qualquer cidadão que andasse pelas ruas.
Superfícies de trens e metrôs, por tradição, eram limpas, assépticas, demonstrando que o Estado trabalhava com afinco na manutenção de seus bens (e que a lataria de um trêm ou metrô era uma propriedade do Estado). A ação dos grafiteiros desequilibra esta partilha habitual. Quando uma pessoa grafita nesta superfície, emerge a questão: o grafiteiro faz isto com qual direito? Quem, afinal, é o proprietário daquela superfície? Quem pode se manifestar ali? Claro, a lei diz que o dono é o Estado, e ele deve proteger a lataria do metrô. Mas não se trata aqui de uma discussão jurídica. A questão é que uma forma de expressão foi iniciada e, naquele momento – assim como, em parte, agora –, houve um combate baseado na ideia de que os grafites não se tratavam de uma forma de expressão, mas de sujeira, crime ou vandalismo. Uma ameaça ao bem público. As autoridades chegaram até mesmo a evocar um possível mau gosto para justificar a retirada das intervenções, fazendo o papel de um improvável curador artístico da rua.
Naquela Nova York do início dos anos 1970, os gestos dos grafiteiros interromperam um possível consenso acerca dos limites entre público e privado. Pessoas passaram a se perguntar: quais critérios um governo deve usar para decidir suas ações? A beleza ou feiúra de determinada expressão? Quem detém o direito de inserir textos na rua? O governo, que privatiza paisagens e locais públicos para a publicidade comercial, ou os cidadãos, que cobrem tais lugares de forma espontânea? Tornou-se necessária a criação de novas configurações de relação entre cada um e todos: uma reflexão sobre a comunidade se impôs. As sensibilidades agiam de maneira oposta – grafiteiros continuavam a trabalhar, colocando codinomes e imagens em lugares públicos, e do outro lado autoridades realizavam uma campanha para que a ação dos primeiros fosse cada vez mais coibida pela sociedade.
É o jogo da estética. Para Rancière, a estética não se trata de certo gosto ou até mesmo estilo de arte, mas sim “uma forma a priori de sensibilidade”. A estética é uma consequência das forças que configuram nosso lugar na sociedade e as formas de distribuição do comum e do privado. A estética seria aquilo que resulta – apesar de sempre em mutação – da partilha do sensível. Vilém Flusser diria que o artista recodifica o meio. No caso, os artistas seriam os grafiteiros, que inseriram algo de novo no meio que é a cidade. Curioso – e até irônico – vermos que a cena fervilhante do início dos anos 1970 em NY geraria alguns dos grafiteiros que hoje são personagens de séries de alto ibope, como The Get Down (Netflix), além de inspiradores do talvez mais conhecido dos grafiteiros, Jean-Michel Basquiat, o mesmo que foi anunciado como artista participante de uma grande exposição em 2018 no MASP.
O grafite – antes de qualquer debate sobre ser ou não arte – é uma ação política, e não só pelo que pode dizer ou representar, mas por sua própria natureza: uma inscrição sobre um local não previamente designado para tal. A imprevisibilidade é, antes de tudo, um índice de humanidade. Uma cidade totalmente previsível, onde nada escapa, nada sai do lugar, não é uma cidade limpa, mas uma cidade triste.
O escritor italiano Italo Calvino nos fala da cidade de Esmeraldina, onde os habitantes podem escolher entre o percurso terrestre e o de barco para chegar ao mesmo lugar. Cada uma dessas vias se abre ainda em muitas outras. Portanto, os habitantes “se dão o divertimento diário de um novo itinerário para ir aos mesmos lugares”. Em Esmeraldina, diz Calvino, “mesmo as vidas mais rotineiras e tranquilas transcorrem sem se repetir”. Isto se dá por conta da diversidade de paisagens, as novidades pelo caminho, os detalhes imprevistos e legados humanos que seus invejáveis moradores têm a chance de encontrar. Esmeraldina é uma cidade fictícia. Neste ponto a ficção tem muito a ensinar à realidade, principalmente, à realidade que a prefeitura de São Paulo pretende criar para os seus moradores e visitantes.