O título deste texto não é um chamado, um apelo, credo íntimo ou estético, apenas a constatação banal de que imagens, muitas delas, nos impelem a falar. E, como se não bastasse a eloquência visual de que muitas são portadoras, falamos também por elas, em seu lugar, como se compelidos à tradução que transforma o visível em legível. Falamos tanto e talvez, entre outras razões, porque, apesar da enxurrada cotidiana a que somos submetidos e para a qual também contribuímos, a definição de imagem seja ainda escorregadia e sua percepção, problemática. Ora deduzimos das fotografias aquilo que estaria atrás do que mostram, como um subtexto a ser extraído e explicitado, ora as utilizamos para fazer calar os discursos pela força de uma evidência visual que julgamos indiscutível.
A história recente do olhar é também a história do olho ameaçado pelo excesso de visível e pela falta de imagens. A fotografia eloquente, através da qual algo fala, e a fotografia como elemento comprobatório, muda e inibidora do verbo, são apenas dois dos possíveis modos de nos confrontarmos com o visível que nos rodeia. E, ainda assim, talvez não se trate ainda de imagens num sentido mais pleno ou radical, se aceitarmos que a existência de uma imagem depende não tanto de sua capacidade de afirmar o visível, mas de fazer com que o olhar hesite diante daquilo que vê. Daí a situação paradoxal na qual, mesmo em excesso, a imagem, como algo que se destaca do visível, continua a fazer falta.
Tomo como exemplo o Facebook, esse espaço de murmúrios e lamentos, sem entradas ou saídas, jardim de nossos narcisos em flor, pulsões escópicas cotidianas e compulsivos compartilhamentos de links em geral mais eficazes para a sobrevida da informação do que para seu metabolismo. Lugar também do desacordo, do desagravo, da gritaria, da citação e dos gatos. O que poderia ser – e às vezes é – um dispositivo de enlace crítico ou poético entre texto e imagem acaba reduzido ao cacoete da redundância ilustrativa ou da legendagem infinita, preferencialmente sob a forma lapidar do comentário breve. O layout dos murais verticais incentiva, ou pelo menos não impede, o tensionamento de imagens e textos.
Nesse ambiente, porém, toda imagem já funciona de antemão como comentário – e aí não importa muito se o tema é a última novidade futebolística, a catástrofe urbana do dia, o menu do almoço de domingo ou a menina tomando banho de esgoto na sua cidade. As condições de visibilidade de uma imagem na rede são precárias, entre tantos motivos, porque o ambiente midiático de compartilhamento tem como modelo a informação jornalística, a mensagem. Por mais distintas que sejam as fotos disseminadas, tudo fica nivelado pela ilusão de transparência e pelo imediatismo da codificação social. Assim, o mundo das imagens é frequentemente tomado por imagem do mundo, através de fotos que afirmam o que mostram e mostram o que afirmam.
Kunsthistorisches Museum, Viena, 1987
Rijksmuseum, Amsterdam, 2014
As duas fotos acima constituem cenas de leitura de imagens em ambientes museológicos. Uma delas faz parte de meu arquivo pessoal, a outra viralizou recentemente nas redes sociais por apresentar um grupo de jovens de costas para A ronda noturna, de Rembrandt, e não só isso, mas também o magnetismo das pequenas telas de seus celulares, enquanto a grande tela fica evidenciada ali atrás por abandono. Nesse caso, parece que, ao compartilhar a imagem, compartilhava-se também a ideia de que certo mundo perceptivo teria chegado ao fim. Jovens alienados, não se fazem mais espectadores como antigamente etc. O olhar tátil, da concentração imersiva, da capacidade de experimentar uma pintura grandiosa em sua potência plástica e estética se perdeu. É o fim do mundo, ou pelo menos, o fim de certo mundo em que ainda éramos capazes de detectar a verdadeira imagem no brejo da mediocridade circundante.
Essa melancolia não é completamente infundada. Entretanto, se abrirmos mão do seu catastrofismo, recuando um pouco na leitura, talvez a foto nos diga bem menos sobre o fim dos tempos do que sobre a condição perceptiva em tempos de hipermediação do visível. Diante dela, como diante de uma cena flagrada em determinado instante, talvez o que se mostre seja não mais do que um grupo de jovens muito louros, provavelmente estudantes do ensino médio ou secundário, sentados perto uns dos outros e com os olhos voltados para seus celulares. Ao fundo, uma grande tela escura com homens “de antigamente” procurando alguém ou alguma coisa num ambiente de sombras atingido por um feixe de luz.
Não entrarei aqui na história do quadro, cujo título é uma espécie de falsa legenda, já que não se trata ali de uma ronda propriamente dita nem de uma cena noturna. A fotografia me atrai por dois motivos: em primeiro lugar porque a pintura sempre retorna para assombrar a imagem digital, e é exatamente assim, como coisa assombrosa, ao mesmo tempo distante e presente, que o quadro comparece na foto; por outro lado, a cena é emblemática de um problema bastante contemporâneo: como chegar a fazer com que uma imagem seja reconhecida em sua potência, seja realmente vista em meio à algazarra do visível? O desafio da formação de público se encontra aí com o problema ainda mais escorregadio da formação do olhar.
Diante da perda de prestígio cultural do campo artístico, muitos museus redefiniram sua missão cultural tentando e testando o ajuste entre essas duas questões – vale lembrar que o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) criou a sua Escola do Olhar –, aliando a necessidade de formação de público a certa pedagogia do olhar. Sem diminuir a importância desses programas, em alguns dos quais já participei como artista, e reconhecendo o importante desafio que assumem, há também na proliferação veloz dessas iniciativas o risco de transformação dos museus em entidade pedagógica e da arte em aula infinita.
Independentemente da classe social ou do público que se pretende atrair para dentro dos museus, nem sempre os procedimentos propiciam de fato uma experiência do olhar. Ocorre muito quando, desajeitada ou apressadamente, tenta-se facilitar a compreensão das obras lançando mão de recursos lúdicos não tão cuidadosamente formulados como deveriam. Nos piores casos, a arte se transforma em pretexto luxuoso para atividades colaterais que infantilizam o espectador. O espectador emancipado fica aprisionado nos projetos de emancipação do seu próprio olhar.
Voltando aos jovens visitantes do Rijksmuseum, o fato de estarem de costas e desatentos ao quadro não significa que estejam rejeitando a pintura de Rembrandt. Irritados com os comentários agressivos, funcionários do Rijksmuseum esclareceram no Facebook que aquelas pessoas estavam na verdade consultando em seus celulares o novo aplicativo do museu, portanto continuavam interessadas no quadro, provavelmente em sua história, podendo também ampliar partes e detalhes, conforme as possibilidades do aplicativo.
Podemos questionar a pertinência, a necessidade ou a importância desse tipo de aplicativo para a formação do olhar, mas, apesar da indignação generalizada, é bem pouco provável que o novo app do Rijksmuseum seja mais nocivo do que um audioguia mal preparado ou um texto de parede excessivamente pedagógico. Lembro de um professor que acompanhava minha turma do Liceo Gaudenzio Ferrari à Galleria degli Uffizzi, em Florença, e falava tanto que desviava nossos olhos. É claro, a voz de um professor também é capaz de aproximar o olho da potência do que é visto, assim como os novos aplicativos também têm permitido aos pesquisadores e professores de História da Arte uma visualização dos meandros da pintura ampliando detalhes como nunca antes havia sido possível. Oferecem a possibilidade de um contato visual exploratório, quase arqueológico.
Interessa também não descolar totalmente o debate em torno das tecnologias de visão do contexto universitário do ensino de arte, já que no Brasil dependemos fortemente da reprodução de imagens. Assim, o problema se desviaria da recusa enojada ou do deslumbramento fútil com os novos aparatos de visualização, levando em conta que visualizar não é o mesmo que perceber. Tanto o olhar supersônico quanto o excesso de informação biográfica não garantem por si sós uma percepção mais apurada nem um encontro decisivo com um fato ou objeto artístico. Se o problema da formação do olhar dependesse exclusivamente do incremento ótico, não precisaríamos das histórias da arte, da arqueologia, dos antropólogos da imagem ou da própria crítica.
Por outro lado, é ingênuo acreditar que somos capazes de uma experiência puramente visual do visível. Não existe uma tal ilha da pureza sensorial fora da condição mediada da imagem na qual, por bem ou por mal, estamos instalados. Não há como escapar inteiramente dos “aplicativos” que orientam a compreensão de uma imagem, sejam eles os tradicionais guias turísticos, os discursos históricos, as ferramentas conceituais da teoria da arte, a pedagogia museológica ou nossa própria inércia perceptiva.
O acesso à porção invisível do visível não passa necessariamente pelo aumento da capacidade ótica ou pela erudição desenfreada, mas por certa cautela diante da imagem. Como sugere John Berger, talvez seja uma boa hora para perguntas ingênuas cujas respostas podem ser tudo menos simples. O que impele a pintar, desde o Paleolítico até os nossos dias? O que toda pintura têm em comum? Talvez um olhar digressivo, uma aproximação ao mundo imaginal – nas brechas entre o material e o espiritual – dos ícones bizantinos, um olhar demorado sobre o retrato espantosamente próximo de uma jovem do primeiro século em El Fayoum, ou o espanto produzido pelas pinturas pré-históricas cada vez mais recuadas no tempo, ajudem a desarmar algumas armadilhas do visível que nos rodeia.