Tá bom, vamos fazer o seguinte jogo: eu digo as palavras “cânone”, “história do romance”, “clássicos”, “fundadores”. No que você pensa? A odisseia, de Homero? Dom Quixote, de Cervantes, alardeado como “o primeiro romance moderno”? Provavelmente, não? É o que eu pensaria, ao menos. Quando se fala de cânone, parece que podemos até omitir a palavra “ocidental”, como se ela estivesse implícita.
No entanto, nas aulas que cursei de literatura japonesa, sob orientação do professor Andrei Cunha, conheci uma história da literatura e um cânone muito diferente do ocidental. Foi lá que entrei em contato com dois livros que me marcaram profundamente: História de Genji, de Murasaki Shikibu, e O livro de travesseiro, de Sei Shonagon. Ambos os livros foram escritos por mulheres durante o período Heian, no começo do século XI, uma época em que mulheres escritoras não eram vistas com bons olhos (algo que, convenhamos, perdurou por mais um bom tempo).
História de Genji é um romance gigantesco de mais de mil páginas, que narra uma história de amor proibido envolvendo o filho do Imperador (e outros casos amorosos do rapaz). A trama se passa na corte e a narração utiliza dezenas de recursos e artifícios que se popularizariam séculos depois entre os romancistas ocidentais. Não é à toa que muitos apontam este livro como o verdadeiro “primeiro romance moderno”, e alguns até ousam traçar relações entre a prosa de Shikibu e a de Marcel Proust, escrita quase mil anos depois. O livro, para leitores contemporâneos, pode se revelar bastante enfadonho em diversas partes (admito que sofri para ler e pulei trechos), ainda mais para os que não são versados na antiga cultura japonesa – o que inclui muitos leitores japoneses contemporâneos. Apesar disso, guarda um valor histórico inestimável, e há um trecho em particular no qual ocorre uma discussão acerca da função da ficção que me pareceu, na época da leitura, uma revelação.
O livro de travesseiro, de Sei Shonagon, não poderia ser mais diferente, apesar de ter sido escrito na mesma época por uma mulher que, além disso, conhecia pessoalmente Murasaki Shikibu. A obra de Shonagon é composta de pequenas observações cotidianas sobre a vida na corte, a natureza, a cor do céu, as vestimentas etc. O livro foi o pioneiro no gênero zuihitsu, isto é, uma coleção de anotações casuais, despretensiosas, que se estruturam como pequenos ensaios literários, usando um estilo bem trabalhado para falar de banalidades. Sei Shonagon pode estar listando as montanhas japonesas que acha mais bonitas, não interessa, ela o fará com uma sensibilidade ímpar, o que confere um tom singelo ao que está sendo narrado – ainda que “narração” não seja a palavra adequada para classificar o que acontece nos fragmentos de O livro de travesseiro.
São dois livros interessantes e importantes, mas não é exatamente deles que quero falar, e sim de uma característica bastante peculiar da época e do meio em que foram produzidos. Naquele período histórico do Japão, as mulheres eram proibidas de escrever nos gêneros “nobres” de poesia, reservados aos homens. E qual foi o resultado disso? Sei Shonagon e Murasaki Shikibu inventaram novos gêneros narrativos, uma com o seu belo livro diaresco de observações pessoais; a outra, com um esquisito e complexo romance com personagens marcados por fortes traços psicológicos. Se elas possuíssem direitos iguais, talvez não tivessem revolucionado a literatura japonesa.
A proibição gerou poderosos frutos na história da arte. Basta observar, por exemplo, todos os livros e canções e quadros produzidos sob regimes ditatoriais. Muitos artistas reagiram virulentamente à castração de suas liberdades, criando, assim, obras de arte potentes e corajosas. Na opinião de um dos “homens hediondos” de David Foster Wallace, não apenas a privação, mas uma experiência de sofrimento extremo e traumático pode ser produtiva. O personagem de Wallace argumenta que, se não fosse pela Segunda Guerra Mundial, não teríamos O homem em busca de sentido, de Viktor Frankl, uma grande obra literária fruto da experiência do autor em um campo de concentração.
Não quero, de modo algum, fazer uma apologia à ditadura ou à dominação masculina. Ninguém gostaria de retornar a um período no qual as mulheres não têm liberdade de escrever o que quiserem ou no qual os artistas são censurados. Ninguém, só um imbecil por completo. O que não muda o fato observável de que muitas das obras mais interessantes da humanidade surgiram em contextos de grande adversidade.
Escrevo do ponto de vista de um homem branco de classe média que nasceu um ano antes do fim da ditadura. O mundo continua cheio de problemas, problemas difusos e complexos. Entretanto, nunca sofri nenhuma espécie de privação radical. Minha situação é bastante similar à dos meus colegas de geração em quase todo o Ocidente. Grandes obras podem surgir neste contexto, claro. Mas nada disso impede que eu me pergunte, por simples e puro exercício intelectual, como seriam as coisas se ainda vivêssemos, digamos, sob um regime totalitário, se tivéssemos um inimigo claro, se sofrêssemos proibições e privações. E, depois dessa especulação, posso respirar aliviado sabendo que tudo não passou de um mero exercício de imaginação.