Os filmes de gênero não costumam ser cultivados no Brasil pelo chamado “cinema de autor”, isto é, por aquele cinema cujas pretensões vão além do entretenimento imediato e impessoal. No caso do terror, as exceções confirmam a regra: os filmes do Zé do Caixão e o “terrir” paródico de Ivan Cardoso são praticamente gêneros em si mesmos, sem descendentes.
É nesta seara pouco explorada que Marco Dutra parece disposto a se embrenhar. Se seu longa de estreia, Trabalhar cansa (codirigido por Juliana Rojas), tangenciava o suspense e o horror, como que tateando o terreno, em Quando eu era vivo ele mergulha fundo no gênero, manipulando de modo muito pessoal suas regras e convenções.
http://www.youtube.com/watch?v=Nrf6R1nwSxM
Uma sinopse possível, sem prejudicar as surpresas e descobertas do espectador, seria a seguinte: depois de se separar da mulher, Júnior (Marat Descartes, extraordinário), um homem na faixa dos trinta, volta à casa do pai viúvo (Antônio Fagundes), o mesmo apartamento paulistano em que passou a infância. Só que agora o quarto em que ele e o irmão dormiam está ocupado por uma hóspede, a estudante de música Bruna (Sandy), que veio de Avaré. Júnior fica na sala.
Signos do passado
Aos poucos, o personagem vai explorando o apartamento, reencontrando em seus recônditos as marcas de um passado muito forte e, ao que tudo indica, sinistro. Com sua ajuda, é como se a própria casa retomasse seus direitos, ou antes sua vida anterior, sob a égide da figura da mãe (Helena Albergaria). Esta é onipresente nas lembranças do filho – resgatadas em fitas VHS e em objetos escondidos pelo apartamento – e também em seus sonhos, aliás apresentados com uma textura semelhante à dos velhos vídeos.
É com inteligência e sutileza que Dutra (inspirado no romance A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli) traça ao mesmo tempo a trajetória (para)psicológica de Júnior, reconstrói fragmentariamente o passado da família, redesenha o espaço da casa e lança os personagens em novos impasses.
Uma referência evidente (admitida como inspiração pelo próprio Marat Descartes em entrevista na Mostra de Cinema de Tiradentes, onde o filme teve sua primeira exibição pública) é a transformação do personagem de Jack Nicholson em O Iluminado, mas é lícito pensar também em certos filmes de Polanski, como Repulsa ao sexo, O bebê de Rosemary e sobretudo O inquilino, obras em que o ambiente parece tomar posse de seus ocupantes. O espaço físico como projeção dos personagens e vice-versa. Aqui, uma cena expressiva de O inquilino, obra-prima hoje meio esquecida:
http://www.youtube.com/watch?v=Sb-OKQjCnDw
O fato é que, assim como em todos os exemplos citados, em Quando eu era vivo parecemos trilhar um terreno no limiar entre o psicológico (ou psicótico) e o sobrenatural, entre o “aqui-agora” e o além. O sono da razão produzindo monstros, como na célebre frase de Goya. De certo modo é o próprio cinema que, por um par de horas, pode induzir esse sono da razão, propiciando a emergência do sonho, ainda que sob a forma de pesadelo.
Do prosaico ao sobrenatural
Isso “no atacado”. No “varejo”, isto é, na construção da atmosfera de cada cena, de cada plano, o filme paga tributo a certas convenções do gênero, como a extensão do lapso de tempo entre a abertura de uma porta e a entrada em quadro do personagem que a abriu, ou os travellings lentos acompanhados de uma música de vibração grave quando algum ser ou objeto está para ser revelado, ou ainda o uso exacerbado e expressionista dos ruídos. Mas quase sempre o desenlace não é exatamente o que se espera. Como recomendava Hitchcock, Dutra parte do clichê para chegar a algo original – e não o contrário, que é o que faz a maioria dos diretores.
Como nos filmes de David Lynch, parece sempre haver algo pulsando fora do quadro ou nos seus cantos obscuros. Com poucos recursos, sugerem-se outras dimensões, ameaças ocultas, mensagens cifradas.
Tomemos dois exemplos singelos, as duas sequências iniciais do filme. Na primeira, Júnior ainda menino, filmado em VHS pelo irmão, lê com uma lanterna uma mensagem escrita pela mãe, sob uma colcha de tricô – uma daquelas cabaninhas que as crianças fazem na cama. De repente, o pai aparece na porta, eles apagam a luz e vemos apenas o vulto do pai pelas frestas da colcha. Quanta coisa está contida nesse breve trecho: a cumplicidade entre os irmãos e a mãe, a figura estranha e ameaçadora do pai, o segredo, o mistério.
Na sequência seguinte, já no tempo presente, Júnior arrasta sua mala de rodinhas pela calçada, à noite, e toca o interfone do prédio do pai. Este desce para recebê-lo, iniciando um diálogo desajeitado e lacunar. Quando eles vão entrar, ouvem-se os gritos amalucados e pungentes de um sem-teto. “É o louco da rua”, explica o pai, e passa a falar sobre as mudanças recentes no prédio: luz que acende por meio de sensor de presença, elevador moderno. Esse jogo entre o prosaico e a loucura à espreita conduzirá todo o filme.
Música narrativa
O papel da música na construção de Quando eu era vivo mereceria um texto à parte. A trilha sonora dos irmãos Guilherme e Gustavo Barbato, com a participação do próprio Marco Dutra em diversas composições (e do cineasta Caetano Gotardo em algumas letras), é essencial não apenas para criar o clima emocional do filme, mas também para contar a própria história e multiplicar seus sentidos.
A presença de Sandy entre os protagonistas, que surpreendeu tanta gente, pode ser compreendida não apenas nesse contexto musical, mas naquele sentido mais amplo mencionado acima, o de “partir do clichê para chegar a algo original”. Sandy entra em cena como a mocinha doce e angelical que parece saída de uma série americana das antigas e se transforma junto com o filme. Da interação/entrechoque desses três atores de gerações e estirpes diferentes (Fagundes, Marat e Sandy) surge algo novo, forte, indefinível e belo – como o filme de Marco Dutra.