Raul, o som e a fúria

No cinema

30.03.12

Há artistas que aspiram ao sublime. Apuram e refinam seus instrumentos para chegar o mais perto possível de algo como a perfeição. E há os que fazem justo o contrário: mergulham de cabeça na matéria impura à sua volta, tornam-se catalisadores do som e da fúria de seu tempo. Raul Seixas, desnecessário dizer, foi do segundo tipo.

O grande feito de Raul – O início, o fim e o meio é o de traduzir em cinema, pulsante cinema, essa trajetória humana e artística destrambelhada. O documentário de Walter Carvalho e Leonardo Gudel reúne uma massa impressionante de materiais – filmes de época, clipes, fotos, depoimentos, notícias de jornal – e os organiza de maneira análoga à produção do biografado, anárquica, explosiva, heterogênea, paradoxal.

Vibração em vez de explicação

O princípio que rege a estrutura do filme é muito mais a vibração do que a explicação. Embora siga uma linha mais ou menos cronológica e haja nele vários depoimentos (de amigos, de críticos, de fãs) procurando decifrar Raul Seixas, não parece ser esse o intuito dos realizadores, e sim o de mostrá-lo em sua integridade contraditória e irredutível. Uma metamorfose ambulante, como ele próprio se definiu.

Entre tantos personagens entrevistados, há um que se destaca como um contraponto implícito (e incômodo) ao retratado: Paulo Coelho. O mago dos best-sellers, principal parceiro de Raul, lembra, entre outras coisas, que foi quem introduziu o amigo nas drogas pesadas, como a heroína e o LSD, além de tê-lo seduzido para fantasias e rituais demoníacos.

Enquanto o ex-satanista tornado guru prêt-à-porter era assimilado pela indústria cultural e se aburguesava na vida privada, seu antigo parceiro afundava num inferno pessoal de álcool, drogas, penúria financeira e crises de relacionamento. O filme evita o comentário e o julgamento. Limita-se a realçar a ironia das duas trajetórias opostas – a do roqueiro e a do escritor – mostrando o ambiente cool, a fala mansa e as roupas chiques de Coelho. Confira no trailer:

http://www.youtube.com/watch?v=IiRQjiZ7vNw

Walter Carvalho, um de nossos mais celebrados diretores de fotografia, sabe que o cinema é isso: dar a ver – e a ouvir, no caso. Ele já havia visitado o mundo do sexo, drogas e rock’n roll ao codirigir, com Sandra Werneck, o longa de ficção Cazuza. Mas, comparado com o atual documentário, Cazuza é quase uma visita de cortesia. Raul é uma imersão total.

Descidas ao inferno

Faltou dizer que, sem deixar de ser trágico, é um filme divertidíssimo, que faz rir com a mesma intensidade com que comove.

Em todo caso, não foi de Cazuza que me lembrei ao ver Raul, e sim de outro documentário mais ou menos recente, o pungente Lóki, de Paulo Henrique Fontenelle, sobre o mutante Arnaldo Baptista. Aqui, o trailer do filme:

http://www.youtube.com/watch?v=izGLQUGZZMs

O proletário roqueiro baiano e o músico vanguardista paulistano de classe média desceram ao inferno, cada um por um caminho. Arnaldo, ainda que muito machucado, voltou para contar a história. Raul não. A tarefa ficou por conta de Walter Carvalho e Leonardo Gudel.

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