Soderbergh e o entretenimento disfarçado de arte

No cinema

24.05.13
"Terapia de risco", Steven Soderbergh

“Terapia de risco”, Steven Soderbergh

Mais do que meramente prolífico (trinta longas em pouco mais de vinte anos de carreira), Steven Soderbergh é um cineasta errático e irregular. É difícil encontrar algo em comum entre um drama moral de baixo orçamento como Sexo, mentiras e videotape e uma cinebiografia épica como Che, ou entre o pastiche “de arte” Kafka e os thrillers criminais da série iniciada com Onze homens e um segredo. Mas uma observação atenta de Terapia de risco, atualmente em cartaz, pode iluminar algumas das encruzilhadas do diretor – e do cinema hollywoodiano de hoje em dia.

http://www.youtube.com/watch?v=1_uOt14rqXY

Em primeiro lugar, há um tema candente e relevante: a medicalização da vida americana. O enredo gira em torno de uma mulher deprimida (Rooney Mara) cujo tratamento à base de psicotrópicos de última geração por seu psiquiatra (Jude Law) leva, aparentemente, a resultados desastrosos. A esse substrato de “denúncia” (que inclui um retrato da ação sem escrúpulos da indústria farmacêutica), Soderbergh acopla uma retorcida trama de thriller que envolverá paranoia, drama de tribunal, crise conjugal, amor lésbico e mais um punhado de subtemas igualmente atuais.

Oportuno ou oportunista?

Como tantos outros filmes americanos recentes, Terapia de risco parece transitar na fronteira entre o oportuno e o oportunista, entre o sensacional e o sensacionalista, entre o espetacular e o espetaculoso. No final, os múltiplos estímulos parecem anular uns aos outros – numa curiosa analogia com os efeitos dos remédios de tarja preta usados na história – e a própria crítica inicial acaba se diluindo. Afinal, tudo se resume a um drama mesquinho de ciúme e cobiça pessoal, e a indústria sai quase ilesa, com leves arranhões.

Também em sua linguagem narrativa e em sua fatura estética o filme de Soderbergh oscila entre o entretenimento e a “seriedade”, entre o clichê e a busca da originalidade. Há, antes de tudo, uma manipulação um tanto marota do ponto de vista, de modo a engodar o espectador. Boa parte da primeira metade da história é narrada do ponto de vista da paciente. Depois, somos informados de que ela estava fingindo. É como se o que tivéssemos visto até então fosse uma encenação, ou uma mera elaboração mental da personagem. Só que não foi assim que as coisas foram apresentadas, e sim como um relato “direto”, realista, em terceira pessoa.

Por muito menos – vale dizer, por um flashback enganoso – Hitchcock teve questionado seu Pavor nos bastidores, ainda que lá ele tivesse o álibi de que o relato mentiroso era a narração retrospectiva de um personagem. Aqui, o controvertido flashback – do qual o próprio Hitchcock posteriormente se declarou arrependido:

http://www.youtube.com/watch?v=rFNXYPVmjik

Pretensão autoral

Em Terapia de risco, a essa construção narrativa de honestidade questionável – mas que se tornou moeda corrente no cinema americano atual – acrescenta-se uma exibição de procedimentos formais heterogêneos e sem função aparente.

Na cena em que a protagonista avança com o carro contra uma parede, por exemplo, há um enquadramento em que a câmera é colocada sob o pedal do acelerador. Pouco antes, quando ela está na cama com o marido, a sequência é iniciada com imagens sacolejantes do teto do quarto, como se uma câmera subjetiva mimetizasse o balanço de seu rosto na cama sob os movimentos do homem. Aliados a uma luminescência de aquário na maioria das cenas de interiores, esses enquadramentos aparentemente sem critério configuram uma pretensão “autoral” no interior do que poderia ser um honesto e eficiente thriller de entretenimento.

"Terapia de risco", Steven Soderbergh

“Terapia de risco”, Steven Soderbergh

Desse modo, Soderbergh (que depois desse já dirigiu outro longa, Behind the candelabra, atualmente em competição em Cannes) parece fazer exatamente o contrário do melhor cinema clássico americano: Hawks, Ford, Hitchcock, Wilder. Se estes produziam grande arte disfarçada de entretenimento corriqueiro, o cinema camaleônico de Soderbergh é entretenimento corriqueiro disfarçado de arte.

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