Uma tradução “pretensiosa” do Ulysses – quatro perguntas a Caetano Galindo

Quatro perguntas

01.06.11

Em 2012, será publicada no Brasil a terceira tradução de Ulysses, do irlandês James Joyce, romance que transformou a literatura moderna. Hermético, confuso e indecifrável são alguns dos epítetos em geral dirigidos ao livro, marco da linguagem e do estilo modernistas no século XX.

O tradutor paranaense Caetano Galindo

O tradutor paranaense Caetano Galindo

A tradução para o português, anteriormente realizada pelo filólogo Antonio Houaiss e, mais tarde, pela professora Bernardina Silveira, tornou-se uma “missão” para o professor do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná, Caetano Galindo. Ele respondeu a quatro perguntas feitas pelo blog do IMS, falou sobre as dificuldades linguísticas e confirmou o intuito de fazer uma tradução mais ousada do livro.

Galindo, que comenta detalhes da tradução e pesquisas sobre Ulysses no Twitter, criando um canal de acesso à obra, é também tradutor de Thomas Pynchon e Tom Stoppard no Brasil. Confira abaixo a entrevista.

 

James Joyce ganhou ao longo dos anos a pecha de “autor difícil”, “hermético” e outros adjetivos similares. A que você acha que se deve isso e o que funcionaria como antídoto a essa sentença que por vezes acaba por afastar leitores?

Bom, se deve primeiro ao fato de que ele realmente não é um autor fácil. Você até pode chegar ao estágio de relaxamento e entretenimento totais e tal; de ler o livro reclinado e feliz só gozando o privilégio. Mas isso vai vir lá pela terceira leitura. De início, vai te custar algum trabalho. Está certo que esse trabalho vem sempre no meio também de um monte de prazer. Não é como se fosse uma lição de casa chata. É uma experiência insanamente divertida, que te custa bastante esforço. Como as melhores. Em segundo lugar, tem a mística, o culto, que são meio autorreforçáveis. Os leitores gostam de ser membros de um clube exclusivo. A ideia da bandeira vermelha, do “do not trespass“, é cara a bastante gente. O que vai fazer isso se reverter, e Joyce chegar ao público que ele merece, e que merece ter acesso a ele, é a multiplicação dos acessos, das traduções, das publicações sobre ele. Essas coisas funcionam em bola de neve. E eu fico a essas alturas bem felizinho de poder tentar participar disso, ainda mais na Companhia das Letras, na coleção Penguin, que tem no coração essa pegada popularizadora. As pessoas esquecem, mas, por exemplo, mesmo o estatuto de “clássico incontornável” do Ulysses na literatura de língua inglesa é datável da edição Penguin original. Foi quando o livro deixou de ser cultuado por poucos e tido por impenetrável e/ou pornográfico pela massa maior dos leitores, e passou a ser patrimônio do cânone, de todos os leitores interessados.

Duas traduções de Ulysses foram publicadas no Brasil e contêm diferenças substanciais entre si. O que o leitor deve esperar da sua tradução para a obra que será lançada em 2012?

O que eu pretendo ter feito é uma coisa, o que eles vão encontrar pode ser bem outra… Mas a ideia era tentar trilhar um meio de caminho, de um lado, entre a relativa “elevação” e “uniformização” da prosa e do registro do [Antonio] Houaiss e, do outro, a tendência mais “popularizante” da professora Bernardina [Silveira]. Méritos à parte. Cada uma delas com suas vantagens e suas coerências com os momentos em que foram feitas. Mas a ideia era tentar achar um meio de caminho em que se respeitasse mais amplamente a imensa gama de cores, registros, estilos, recursos e efeitos do Ulysses. Uma tradução um pouco mais “pretensiosa”, que tente responder na mesma moeda tanto às invenções quanto ao que de mais estritamente romanesco há no livro, democrático e variado como nenhum outro. Uma tradução mais colorida, mais divertida, mais inventiva, mais abrangente, mais safada, mais ousadinha mesmo. E, ao mesmo tempo, mais informada, porque a indústria joyciana não para. E cada cinco ou dez anos representam pilhas a mais de livros, comentários e recursos, de que eu pude agora me servir.

Que tipo de dificuldade que você enfrentou ao traduzir Ulysses, que tem particularidades literárias ligadas a costumes e regionalismo irlandeses?

Todo tipo. Pode chutar um aí. Olha, o Finnegans Wake, o romance seguinte do Joyce, é um problema de espécie. Aquilo é uma outra coisa. E as dificuldades envolvidas, seja num processo de leitura seja num processo de tradução serão, sempre, fundamentalmente novas, eventualmente únicas. No Ulysses, o que acontece é uma questão de grau. As dificuldades envolvidas na tradução, assim como na leitura do romance, são as mesmas presentes em toda a tradição romanesca anterior e posterior ao livro. Só que exacerbadas. Intensificadas mesmo. É como traduzir uns dezoito romances densos em um só. Mesmo. Sem retórica. O ganho de experiência é o tamanho dos obstáculos.

Você traduziu recentemente o romance Vício inerente, do escritor americano Thomas Pynchon, também considerado um autor “difícil” e de estilo literário intrincado, tal como Joyce. Por que a atração por escritores com essas características?

Pynchon é muitíssimo bem representado no Brasil pelo grande [tradutor e poeta] Paulo Henriques Britto, que aliás vem sendo meu santo-interlocutor e copidesque magnífico nessa última etapa de revisão do Ulysses. Eu podia dizer que hoje é a editora que escolhe, porque eu, afinal, sou soldadinho etc. (Só o Ulysses é que foi originalmente um projeto “meu”.) Mas o fato é que acho que eu acabo recebendo essas “missões” (mais recentemente Tom Stoppard, Ali Smith, James Agee), esses autores “difíceis”, porque é mesmo algo que me cabe direitinho. É o tipo de literatura de que eu gosto. E, consequentemente, é aquela que eu possivelmente escrevo melhor como tradutor. Porque faço com mais tesão? Eu sou tradutor de horas vagas e acaba que esse elemento, esse “gosto” pesa nas minhas escolhas e nas escolhas que a editora, sabiamente, tem feito por e pra mim. Sabe, antes de ser tradutor, antes de ser professor universitário, eu era músico. E pode bem ser que isso tenha formado a minha cabeça mais que qualquer outra coisa. E a música, estudar música de verdade, te inclina sempre pra esse lado formal, de brincar com formas e estruturas. Sei lá. Te parece? Mas me soa, sabe. Cá por coisas. Vá saber.

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