Vício e virtude

Colunistas

12.12.11

No famoso prefácio a sua peça Senhorita Júlia (1888), Strindberg escreveu que “o ‘vício’ tem um reverso que muito se assemelha à virtude”. É um pensamento insuportável num mundo de certezas perdidas como o nosso. Queremos crer, desesperadamente, que o vício seja mesmo o oposto da virtude. Queremos uma tábua de salvação. Vemos o vício em toda parte, onde ele não devia estar, e já não sabemos como combatê-lo. O pensamento de Strindberg sobre a semelhança dos opostos é essencial para a compreensão da peça. Mas nós queremos poder voltar a acreditar em alguma coisa. E talvez não seja à toa que o texto tenha sido jogado pra escanteio na montagem de Senhorita Júlia em cartaz na Schaubühne, em Berlim.

A encenação é de uma engenhosidade impressionante, fazendo o espírito coletivo da produção ocupar o primeiro plano, antes reservado à perversão e à idiossincrasia do texto. No mesmo prefácio, esculachando as convenções do seu tempo, Strindberg escreveu que “é impossível ao espectador tirar um prazer puro e desinteressado de onde suas convicções mais profundas são contrariadas e onde ele exerce, aplaudindo ou vaiando, a sua ditadura, tão publicamente quanto é permitido num teatro”. Mas, com o texto reduzido a alusões e imagens, o espectador fascinado pela engenhosidade técnica já não precisa perder tempo com esse tipo de preocupação. Porque a técnica não contraria convicção nenhuma; o conforto da técnica é, antes, um fator de consenso.

A peça original trata da atração sexual da filha de um conde, grande proprietário de terras, pelo copeiro do pai, enquanto o pai está ausente. Há três personagens em cena, a filha do conde (Júlia), o copeiro Jean e a cozinheira Cristina, sua noiva. Tudo se passa na cozinha da casa. O que está em jogo é uma luta de classes (e uma guerra dos sexos) marcada pela ambiguidade dos desejos. Adaptada a peça para o Brasil de hoje, Júlia podia muito bem ser a filha de um grande fazendeiro ou de um banqueiro, e o empregado, seu guarda-costas (mas, de fato, seria difícil crer em alguma virtude ou ambiguidade nesses personagens). Na sua inconsequência, achando que pode tudo, Júlia vai pra cama com o copeiro apenas para descobrir, no dia seguinte, humilhada, que agora é refém dele. E o poder destrutivo do copeiro, capaz de levar a moça ao suicídio, nem por isso o fará menos submisso ao conde. Ele sobreviverá na servidão e na covardia. Strindberg fala do espírito do escravo, que não permite o ataque direto. O que faz pensar imediatamente em Nietzsche.

Nada disso está na adaptação de Katie Mitchell e Leo Warmer na Schaubühne. O ponto de vista passou a ser o da cozinheira, de modo que tudo foi reduzido a vislumbres, fragmentos e sussurros (ao que ela pode ver do encontro entre o copeiro e a patroa). Mas o mais impressionante é que tudo o que acontece em cena (atores, cenário, iluminação etc.) tenha sido subordinado à produção de um filme exibido em tempo real numa tela acima do palco. Ou seja, o que acontece em cena é apenas a filmagem cujo resultado final é exibido simultaneamente aos espectadores, na tela. O filme dá a impressão de um realismo rebuscado, com continuidade e luz natural, enquanto tudo no palco é artifício e fragmento. O filme realista é a obra acabada de um esforço técnico minucioso que a cena desconstrói ao se expor em toda a sua artificialidade de estúdio. Duas sonoplastas produzem, diante de uma mesa coberta de elementos potencialmente sonoros, no proscênio, todos os sons das cenas filmadas com os atores no fundo (torneira aberta, talheres batendo nos pratos, passos, fricção de tecidos etc.), por meio de uma série de artimanhas. Tudo é duplicado. Não apenas os sons, mas os próprios personagens que, a depender da disposição das câmeras (que os atores também operam), precisam ser filmados simultaneamente em lugares diferentes. Nada é real. Ou melhor, tudo é construído.

O fascínio dessa desconstrução é enorme, mas limitado. Equivale ao prazer de abrir um relógio para ver como a máquina funciona. Mas para que serve isso além de fazer entender que a representação do tempo é um artifício? (como se já não soubéssemos sem precisar ver máquina nenhuma). Que é que isso muda na ação ou na percepção do tempo? O mesmo podia ser dito em relação à substituição do texto de Strindberg, com sua força contraditória de “pensamento rudimentar e incompleto, que é obra da imaginação”, pelo fascínio da eficiência técnica e da sincronia da montagem. Como se bastasse expor os bastidores do espetáculo para nos desviar, ainda que com a desculpa de uma desconstrução qualquer, do que já não podemos ver em cena. Como se a sincronia do grupo pudesse substituir a idiossincrasia do autor. Como se bastasse o murmúrio contínuo desse mutirão, avançando sem outra preocupação além do espírito prático da produção e da realização, para abafar o eco de um homem gritando sozinho, no passado, o que ninguém mais quer ouvir.

* Na imagem da home que ilustra este post: cena da adaptação de Katie Mitchell e Leo Warmerde de Senhorita Júlia, de August Strindberg

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