Akademie der Künste, Berlim

Tabuleiro de xadrez de Brecht

Akademie der Künste, Berlim

Tabuleiro de xadrez de Brecht

Xadrez na Dinamarca

Cultura

26.12.17

Chefes de quadrilha desfilam por aí como estadistas.
Bertolt Brecht, A morte voluntária do refugiado W.B.

 

Em conhecida série de fotografias, de 1934, Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogam xadrez num jardim ensolarado. Brecht joga com as peças brancas; Benjamin, com as pretas. O contraste físico entre os dois dá pistas sobre suas diferenças. Brecht, de cabeça quase raspada e vestindo um suéter peludo, mantém a postura alerta porém relaxada. Fuma um charuto enquanto joga. Mesmo nos momentos em que se concentra na jogada, seu corpo não aparenta tensão. Benjamin, ao contrário, tem o ar abatido. Metido num colete de lã, por cima da camisa clara, já ostenta a cabeça grisalha, óculos e bigodinho que marcam a figura conhecida da posteridade. Curva-se levemente sobre o tabuleiro, cheio de corpo e de preocupações. Parece bem mais velho do que Brecht, embora a diferença de idade entre eles fosse menos de seis anos. O rosto de Brecht está plenamente iluminado pelo sol; o de Benjamin, na meia sombra. A cabeça do crítico e filósofo, à direita, posiciona-se um pouco mais baixo na composição do que a do dramaturgo e poeta, à esquerda. Obra do enquadramento, e provavelmente de um ligeiro declive do terreno que fez com que a mesa pendesse para o lado de Benjamin.

 

Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogam xadrez em Skovsbostrand, na Dinamarca, em 1934. (Autor anônimo)Arquivo Bertolt Brecht/Akademie der Künste, Berlim

Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogam xadrez em Svendborg, na Dinamarca, em 1934. (Autor anônimo)

 

É difícil resistir à tentação de atribuir significados fatídicos a essa imagem. Quem conhece o destino trágico de Benjamin (alguém não conhece?) poderá enxergar nela o augúrio do suicídio, em setembro de 1940, fruto do cansaço e desespero de quem não aguenta mais o jogo interminável da fuga. Pela mesma medida, seria mais do que perdoável ler no sorriso matreiro de Brecht o prenúncio do sobrevivente que soube vencer um inimigo infinitamente mais poderoso, por meio da viveza, sagacidade e destemor. A vontade historicista é grande, mas seria equivocado extrair das fotos de 1934 lições que só se evidenciariam muitos anos depois. Naquele jardim ensolarado, deviam ser outros, mais prosaicos, os motivos do ânimo ou desânimo de cada um. Uma noite bem ou mal dormida. Uma indisposição passageira. O prazer ou a frustração por estar ganhando ou perdendo a partida. A cena transcorreu na pequena cidade de Svendborg, no sul da Dinamarca, a apenas oitenta quilômetros de distância do território alemão, do qual ambos se encontravam exilados. Brecht morou ali com sua família por seis anos, entre 1933 e 1939, e Benjamin foi visitá-los repetidas vezes. Nessa ocasião, permaneceu cinco meses, de junho a outubro.

A relação entre esses autores – dois dos maiores vultos da cultura alemã no século XX – foi intensa e duradoura. Conheceram-se em 1924, por intermédio da atriz e diretora Asja Lācis, que era amante de Benjamin e amiga de Brecht. Travaram uma amizade desigual, de início. Segundo os muitos depoimentos de quem conviveu com ambos, a admiração de Benjamin por Brecht principiou maior do que a recíproca. Naquele ano, o jovem dramaturgo, de apenas 26 anos, assumiu a direção artística do Deutsches Theater, em Berlim, um dos teatros mais importantes da Europa, de propriedade do lendário Max Reinhardt. Aos 32 anos, Benjamin vivia de traduções e de escrever artigos e ensaios, então bem pouco aclamados. Gravitava em torno do recém-fundado Institut für Sozialforschung – a chamada Escola de Frankfurt, como viria a ser conhecida – mas nunca conseguiu uma colocação estável no meio acadêmico, nem ali nem em qualquer universidade. As relações entre os dois começaram a se estreitar somente no final da década. Em 1930 a 1931, planejaram a criação de uma revista chamada Krise und Kritik (Crise e crítica), a qual nunca chegou a se concretizar. Passaram juntos uma temporada de férias no sul da França, em Le Lavandou, onde se ocuparam em conceber uma tipologia de moradias. Entre 1933 e 1934, traçaram planos para escrever um romance policial a seis mãos, com a atriz e escritora Margarete Steffin, intitulado Mord im Fahrstuhlschacht (Assassinato no poço do elevador). Projetos gorados, que pouco acrescentam à biografia de um e de outro.

Se dependesse das realizações conjuntas, a amizade entre Benjamin e Brecht não despertaria maior interesse. Porém, surpreendentemente, a relação entre eles anda mais atual do que nunca. Uma exposição intitulada Benjamin und Brecht. Denken in Extremen (Pensar nos extremos) ocupa, até 28 de janeiro de 2018, a Akademie der Künste, em Berlim, instituição detentora dos arquivos de ambos os autores. Vem acompanhada de catálogo (somente em alemão, por enquanto), organizado por Erdmut Wizisla, que dirige os dois arquivos e é também autor do volume Benjamin e Brecht: História de uma amizade, publicado em 2004 e traduzido para o português em 2013. Contribuindo para a retomada desse encontro de gigantes, no Brasil, a editora Boitempo acaba de lançar a primeira tradução integral dos Ensaios sobre Brecht, de Benjamin. Mesmo sem centenários ou outras efemérides, parece haver um ressurgimento mundial de interesse pelos dois autores. No princípio de 2014, em quase simultaneidade, foram publicadas em língua inglesa novas biografias de Benjamin, por Howard Eiland e Michael W. Jennings, e de Brecht, por Stephen Parker. Embora nunca tenham saído de cena, Brecht e Benjamin estão de volta com força total.

Mesmo que não tenham assinado juntos nenhum projeto importante, é notável a influência de um sobre a obra do outro. O crítico Benjamin foi um dos primeiros a reconhecer a importância do conceito brechtiano de teatro épico. Em fevereiro de 1931, escreveu o artigo “O que é o teatro épico?” em que ajudou a definir os princípios norteadores do gênero. Era para sair no jornal Frankfurter Zeitung, mas foi derrubado pelo editor Bernhard Diebold, quando já estava no prelo. Anos depois, em 1939, foi publicado na revista Mass und Wert, editada por Thomas Mann e Konrad Falke. Assim como Benjamin escreveu vários ensaios sobre Brecht, este se tornou leitor e mesmo colaborador dos textos do primeiro. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, talvez o ensaio mais famoso de Benjamin, foi escrito em boa parte sob as vistas de Brecht. Aparecido inicialmente em tradução francesa, em 1935, o filósofo recorreu ao poeta ao empreender a versão definitiva no ano seguinte (que só veio à luz, enfim, em 1955). Esperava conseguir sua publicação na revista de exilados alemães, Das Wort, editada em Moscou, da qual Brecht integrava o conselho editorial. Brecht abominou o conceito central do ensaio, “algo que ele [Benjamin] chama de aura”, o qual caracterizou em seus diários como “horrendo”. Embora fossem ambos marxistas, o dramaturgo considerava “abominável” o modo quase místico com que o crítico adaptava “a compreensão materialista da história”.

Benjamin e Brecht concordavam em muito e discordavam em muito mais. Além de Marx, ambos liam e se interessavam por Lao Zi, Baudelaire, Kafka, Freud. De modo geral, divergiam em suas interpretações desses autores. Discutiam o tempo todo, quando estavam juntos. Separados, buscavam a voz do outro para completar a auto-crítica necessária. Aproximaram-se ainda mais nos anos de exílio, mesmo residindo quase o tempo todo em países distintos. Os amigos perdidos e os inimigos em comum geraram uma identificação profunda. Ambos desprezavam Stalin e odiavam o fascismo, com a clareza de quem conhece seus adversários. Talvez não tivessem ficado tão próximos em espírito se os tempos fossem outros, de conversas fiadas e ambições banais. Suas personalidades eram muito divergentes, e isso se evidenciava até nas táticas de tabuleiro. Segundo os biógrafos, Benjamin, introspectivo e melancólico, jogava xadrez com cautela defensiva. Brecht gostava de lances ousados, mais de acordo com sua índole combativa e sedutora. Impossível calcular se essas diferenças influíram no destino de cada um, até porque não dá para generalizar do xadrez para a vida.

Já do xadrez para a literatura, há pontos de tangência. Nos anos mais sombrios da descida para o abismo nazista, ambos Brecht e Benjamin empregaram o jogo como motivo literário. Na peça Vida de Galileu – escrita em 1939. mas só estreada em 1943 – a cena do baile no palácio do Cardeal Bellarmino gira em torno de dois secretários que jogam xadrez e falam mal dos convidados. Para construir essa situação, Brecht deve ter recorrido às muitas horas gastas ao tabuleiro com o amigo, que passou nova temporada em sua casa em Svendborg de junho a outubro de 1938. Benjamin esteve entre os escolhidos para ler uma prova adiantada da peça. Ainda mais conhecido é o exemplo do ensaio “Sobre o conceito da história”, escrito em 1940 mas publicado somente após a morte de Benjamin. O trecho inicial apresenta a relação entre materialismo histórico e teologia por meio da metáfora de um autômato que joga xadrez, vencendo sempre, mas dentro do qual se esconde um anão corcunda que é mestre enxadrista. Vivendo na Califórnia quando soube do suicídio do amigo, Brecht teve ocasião de ler e comentar esse texto antes mesmo de sua publicação no volume editado, in memoriam, pelo Institut für Sozialforschung (então exilado em Los Angeles), em 1942. Em ambos os casos citados, o xadrez é evocado para criticar a manipulação que se faz dos fatos a partir das aparências. Curioso constatar que os dois autores tenham recorrido à mesma analogia para tal propósito e que ambos tenham situado o leitor/espectador fora do jogo, como quem observa impotente enquanto outros disputam o destino que é comum a todos. É o dilema universal dos exilados e refugiados, obrigados a assistir de longe, e em posição de desvantagem, aos lances decisivos da era em que vivem.

Talvez o interesse renovado em Benjamin e Brecht advenha das semelhanças entre o mundo de hoje e a Europa da década de 1930. Polarização ideológica. Crise de refugiados. Recrudescência do nacionalismo e do discurso de ódio com base em religião e etnia. Populismo político. Chefes de quadrilha posando de estadistas, seguindo a formulação do poema de Brecht, citado em epígrafe, um de vários que dedicou ao amigo desaparecido. Vivemos o mesmo compasso de espera pelo desastre que cercava aqueles jogos de xadrez na Dinamarca. De que modo devemos pensar e agir, nessa nova era dos extremos? Como argumentar quando os diálogos se despedaçam e a menor discussão se polariza além de qualquer possibilidade de conciliação? As trajetórias respectivas de Benjamin, vítima do terror e herói póstumo da resistência intelectual, e de Brecht, guerreiro implacável em prol dos princípios, vencido apenas pelas contradições que não poupam a nenhuma verdade, encerram preciosas lições para o presente. Há pressa em aprendê-las. Caso contrário, nos veremos na posição de outro personagem que completa essa trilogia de exilados enxadristas: o misterioso Dr. B, protagonista da novela Xadrez (Schachnovelle), de Stefan Zweig, escrita no Brasil e aparecida em 1942.

Essa última obra de Zweig, acabada logo antes do suicídio, oferece um diagnóstico dos motivos da derrota por quem a viveu de perto. Vale recapitular um pouco, para quem não a leu. A bordo de um navio de Nova York para Buenos Aires, Dr. B enfrenta o campeão mundial de xadrez Czentovic e, para surpresa geral, o vence numa primeira partida. Zweig caracteriza o campeão como um prodígio que, surgido do nada, derrotou todos os grão-mestres de sua época. Isso, apesar de sua boçalidade reconhecida, que faz com que seja incapaz de escrever uma frase sem erros de ortografia ou fazer somas sem contar nos dedos. Na partida final, em que precisa reunir suas forças para superar o campeão pela segunda vez, Dr. B acaba sucumbindo ao jogo lento e sistemático do outro. A agitação nervosa o induz a enxergar equivocadamente o rei do adversário em xeque, e ele abandona a partida. Sua superioridade intelectual não o livra, afinal, da estratégia de atrito psicológico empregada pelo astuto vencedor. A lição tática é conhecida: nunca subestime seu adversário, por mais desprezível que pareça. Os Czentovic do mundo não chegaram à toa aos espaços que ocupam. Souberam jogar com disciplina e método. Desestabilizar o equilíbrio do jogo. Despistar a atenção da jogada. Esperar o momento certo. Atacar e recuar. Dividir para conquistar. Muitas vezes, estudar o adversário supera qualquer vantagem natural. Quem pensa em desbancar um campeão, não pode imaginar que a partida esteja ganha de antemão.

Nada mais inepto do que sair por aí detalhando a superioridade do próprio esquema tático. Na época atual de bate-bocas nas redes sociais e ações políticas encenadas para as câmeras, dá saudade do tempo em que intelectuais engajados jogavam xadrez. Fazem falta tanto a ponderação de Benjamin quanto a audácia de Brecht. Faríamos bem em ler atentamente os avisos que eles deixaram para nós. Como um dos poemas mais famosos de Brecht, “An die Nachgeborenen” (Aos que vão nascer), escrito no exílio de Svendborg, em que ele descreve com atualidade assustadora a sensação de impotência que aflige a muitos de nós, nesses tempos sombrios (em tradução de Paulo César de Souza):

As forças eram mínimas. A meta

Estava bem distante.

Era bem visível, embora para mim

Quase inatingível.

Assim passou o tempo

Que nesta terra me foi dado.

Brecht viveu para ver seus inimigos serem derrotados. Ao contrário do Dr. B, que imaginou o xeque onde não havia, ele ainda pôde dar o xeque-mate.

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