A militância pela barbárie – quatro perguntas para Eugênio Bucci

Quatro perguntas

08.05.14

A dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos e dois filhos, morreu no último dia 3 após ser linchada por moradores do bairro Morrinhos, no Guarujá, litoral paulista. Eles a confundiram com o retrato falado que seria de uma sequestradora de crianças da região, divulgado na página Guarujá Alerta, no Facebook. (O retrato, na verdade, havia sido feito pela polícia do Rio em 2012 em relação a outro caso.)

Eugênio Bucci, jornalista, colunista de “O Estado de S. Paulo” e da revista “Época”, professor da USP, autor de livros sobre ética na imprensa, não aponta as redes sociais como responsáveis pelo fato bárbaro, embora ressalte que “ainda vivemos um tempo em que muita gente toma por verdade comprovada qualquer tolice que apareça numa tela eletrônica”.

Para ele, o acontecimento reflete o abandono sistemático a que multidões são relegadas pelo Estado brasileiro. “Quando disseram nas ruas, em junho de 2013, que o Brasil acordou, disseram uma verdade parcial. Sim, o Brasil acordou, mas, ao acordar, descobriu-se muito mais injusto do que se imaginava. É como se essa injustiça, que ganha a forma de confrontos sucessivos entre privilégios e exclusões, levasse os que mais sofrem a desistir de uma vez por todas da civilização. É como se a única saída fosse a militância pela barbárie.”

1 – Até que ponto a dita sociedade da informação, em que vivemos, é responsável pelo linchamento de Fabiane Maria de Jesus?

Não creio que possamos responsabilizar a sociedade da informação, ou mesmo as tecnologias da era digital, pelo tenebroso assassinato de Fabiane. Os boatos, sim, podem ter um peso na provocação de tragédias. Boatos sempre foram instrumentalizados com esse propósito, nos mais diversos momentos, seja em campanhas de antissemitismo, seja em casos de perseguição individual. O núcleo da responsabilidade, portanto, jamais estaria nos meios de comunicação, sejam eles quais forem, mas no uso que se faz deles. Não me parece que, no caso em questão, houvesse, da parte do blog que difundiu o retrato falado, uma intenção de provocar a morte de alguém. Há elementos na história toda que sugerem, por parte dos que publicaram e mantiveram a notícia sensacionalista no site, uma conduta no mínimo inadvertida, precipitada, desastrosa. Não se pode dizer, contudo, que eles tenham sido a causa do linchamento. Talvez façam parte de um caldo de cultura de exacerbação e de exploração do medo e da animosidade que, levado ao limite, em situações concretas, pode explodir em violência física. Quanto ao linchamento propriamente dito, é da responsabilidade dos linchadores. O episódio de barbárie deveria ser relacionado antes às urgências desesperadoras de muitas comunidades brasileiras, cujos direitos são sistematicamente sonegados pelas autoridades responsáveis. O ambiente de carências em que muitos vivem em nosso país é em si mesmo uma violência continuada contra as pessoas, sabotando as possibilidades de vida digna e segura. Aí, sim, qualquer um que estimule, pelos meios de comunicação, a fantasia tanática de que se pode fazer justiça com as próprias mãos está encorajando atos de insanidade e de degradação.

2 – O jornalismo pode ter uma vitória de Pirro com esse fato? Ou seja, pode ficar indicado que é melhor uma apuração cuidadosa, que custa dinheiro, do que publicar histórias sem comprovação nas redes sociais?

Claro que a apuração cuidadosa é sempre melhor – em todas as circunstâncias. Se ficarmos só nisso, porém, não saímos do lugar. O ponto é: por que são tão raras as apurações cuidadosas no vasto mundo da internet? Não é só por falta de dinheiro, mas também por outros motivos. Elas também são raras porque a comunicação nas tais redes interconectadas é operada por todos e por qualquer um, não apenas por jornalistas profissionais e bem formados. As redes sociais não são uma rede de órgãos de imprensa. Nelas há um pouco de tudo – ou mesmo muito de tudo. Há dentro delas gente mal intencionada, há os deslumbrados, há os fanáticos, há os provocadores irresponsáveis, há os moralistas, os alarmistas, os terroristas. Essa selva de paixões escuras não tem nada a ver com imprensa – embora seja, ela própria, uma forma de comunicação. A imprensa é uma instituição que busca não difundir, mas investigar os boatos, a partir de uma postura crítica. A imprensa, sim, pode e deve ser cobrada quando desobedece a esse imperativo. As redes sociais não têm esse compromisso. É claro que o aprendizado social com o uso das novas tecnologias imprimirá às redes uma série de novos cuidados. Elas tenderão a ser passíveis de responsabilizações, e tenderão a ter de observar parâmetros que talvez as aproximem um pouco da ética da imprensa, mas ainda estamos muito longe disso. Ainda vivemos um tempo em que muita gente toma por verdade comprovada qualquer tolice que apareça numa tela eletrônica. Mais ainda: no Brasil, vivemos um tempo em que as pessoas premidas por demandas mais dramáticas estão deixando de acreditar nas instituições, na justiça, no bem comum, no poder público. O ódio e a pressa, juntos, produzem o caos.

3 – Apontam-se na imprensa, em colunas e em editoriais, fatos recentes como expressões de uma barbárie que cresce no país. Você concorda com isso ou, de alguma forma, o Brasil sempre foi extremamente violento, da escravidão à grande concentração de renda?

Sempre houve violência no Brasil, é claro, como em toda parte. Mas agora estamos presenciando algo distinto. Há no ar e no cotidiano das cidades um adensamento da impaciência, da intolerância, de raiva represada. Ao lado disso, vemos crescentes demonstrações de despreparo e de incompetência de aparatos como a polícia e um ambiente de impunidade que já ultrapassou há muito o inacreditável. A Justiça é morosa e insensível. Esse tipo de violência potencial, que começa a vazar aqui e ali, tem mais a ver com o desgoverno e com os contrastes sociais, os abismos de desigualdade, do que propriamente com as tecnologias da informação. Quando disseram nas ruas, em junho de 2013, que o Brasil acordou, disseram uma verdade parcial. Sim, o Brasil acordou, mas, ao acordar, descobriu-se muito mais injusto do que se imaginava. É como se essa injustiça, que ganha a forma de confrontos sucessivos entre privilégios e exclusões, levasse os que mais sofrem a desistir de uma vez por todas da civilização. É como se a única saída fosse a militância pela barbárie. Fora isso, há um contraste terrível entre temporalidades: de um lado, a urgência dos que aprendem a reivindicar e a tocar fogo nas coisas; de outro lado, um Estado vagaroso, pesado, travado que não consegue processar e dar respostas às urgências do país e de sua gente.

4 – Tentando ampliar o tema do Brasil para o mundo: vivemos tempos bárbaros ou você é otimista em relação ao nosso futuro? A sociedade de informação pode contribuir para que sejamos mais tolerantes?

A informação reduz a intolerância. A mentira faz com que ela recrudesça. Por definição. Onde há informação bem apurada há mais chance de diálogo. Onde há mentira disseminada de forma irresponsável – e principalmente onde há ausência do Estado – o diálogo sucumbe e a violência prospera. Isso vale para a invasão do Iraque (que foi precedida e viabilizada pela divulgação de notícias falsas dando conta de que Saddam Hussein teria em seu poder uma fábrica de armas químicas de destruição em massa), isso valeu para o holocausto, isso vale para a perseguição de inocentes e isso vale para acender o pavio de barris de pólvora em bairros carentes. Não sou otimista nem pessimista. Em relação a mais essa tragédia, digo que a responsabilidade maior é do Estado ausente. O Estado brasileiro vem abandonando sistematicamente multidões inteiras e esse abandono é o maior causador das piores atrocidades que temos visto e que, infelizmente, ainda veremos.

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