Capivaras

Em processo

29.03.17

Tenho mexido muito na ordem das cousas em Capivaras/Sem título. A narrativa conta a história de Olívia, que parte para a Irlanda à procura da mãe, que tem histórico de transtorno bipolar e de sumiços repentinos. A relação de Olivia com a mãe começa a chegar na curva em que os papeis se invertem: a filha cuida da mãe e corre atrás dela. A protagonista tem paranoias suficientes para crer que a mãe, e uma série de outras respostas, estará na Irlanda. Ao longo da narrativa, Olívia convive majoritariamente com outros brasileiros na Ilha Esmeralda e acaba aglutinando essas histórias. Este trecho é o começo, mas ainda no processo de selecioná-lo já mudei ordem de informações. Devo terminar o livro este ano e, ceteris paribus, o livro deve sair ano que vem. É bastante provável que esse projeto se conecte ao meu projeto de criação literária para o mestrado, em inglês sobre o mesmo tema. Este post fala disso.

 

Imagine um grupo de ratos entrelaçado pelas próprias caudas. Sujeira, sangue, pelo de outros animais e merda fizeram que as causas se enodassem cada vez mais. O número de ratos unidos varia, mas eles crescem juntos com suas caudas acumulando cada vez mais detrito, que os gruda cada vez mais. Os relatos e folclores do Rato-Rei — rat king, Rattenkönig, roi des rats — se associam com a Idade Média, e espécimes mumificados ou preservados em álcool são encontrados em museus ao redor do mundo.

Essa é a minha história; minha, do Matildo, da Bunny, do Caetano, da minha mãe, do meu irmão, da dear old Dublin.

E este é o meu livro.

 


 

— Você precisa de uma carteira de identidade nova — o atendente da Polícia Federal decretou.

— Como assim?

Por ter medo da hora marcada. Eu já estava ali fazia duas horas. Corri quando chamaram meu nome. Calor.

— Ela se abre aqui, olha — ele apontou os cantos rasgados do RG. Ainda modelo antigo. — Isso sem falar que tem mais de dez anos.

Fazia calor demais pra explicar que o site não dizia nada. Nada sobre a idade da documentação.

Ele tinha uma tatuagem de um cocker spaniel sentado. Ela preenchia o antebraço todo. Eu deveria falar de cachorros.

— Cara — Mostrei minha carteira de motorista. — Por favor.

— Só… — ele me devolveu a identidade, rindo. — Só faz uma identidade nova amanhã. Sei lá.

Fiz que sim com a cabeça. Ele me direcionava mais para a esquerda para a foto.

— Pode sorrir? — perguntei coberto de suor, ajeitando a camiseta social que minha mãe mandou usar pra causar uma boa impressão no aeroporto. As orelhas soltavam pelo. O olhar arregalado de quem ia tirar o primeiro passaporte. Ainda tinha o comprovante de quitação militar no colo. Era claro que eu era eu.

 


 

Alguém tinha me dito que se ganha em euro. O que é verdade. Alguém tinha me dito que se vê neve. O que é verdade, mas não muito. Alguém tinha me dito que se consegue um visto de estudante com facilidade. Tem escolas de inglês só pra isso. Sou informado. Alguém tinha me dito. E estudantes podem trabalhar. O que é verdade. Precisavam de mão de obra. Depois dos Estados Unidos. O grande lugar pra imigrantes era a Irlanda.  Alguém tinha me dito que não tem criminalidade. O que é quase verdade. É tão-tão-tão fácil. Ninguém tinha me apontado que alguém estava elogiando morar na Irlanda enquanto morava no Brasil.

 


 

A agência de viagens onde contratei o curso da escola mais barata me informou. E eu poderia ficar em casa de família por um mês. Um mês. Em que eu precisaria arranjar onde ficar pelos próximos seis. Com sorte. Eu poderia viajar por um mês depois. E voltar pra casa. Com dinheiro. O visto dura seis meses a mais. E aí recuperaria minha Honda Biz. Meu laptop. Minha câmera digital. Meu celular. Os únicos dois livros que eu tinha, comprados no primeiro semestre de faculdade achando que eu realmente usaria. A mochila da ADMINISTRAÇÃO FINAC eu talvez ganhasse de volta. A pessoa que pagou quinze reais por ela. Visivelmente só pagou quinze reais por ela porque era o brechó, que minha ex-namorada organizou pra viagem. Eu iria viver na Irlanda. Morar em casa de família. Dividir apartamento com imigrantes gente fina. Aprender inglês. Tirar fotos. E criar um álbum no Orkut. Falar inglês bem pra caralho. Conhecer o mundo. Ia voltar. E ainda ia comprar minha mochila de volta.

Minha mãe sugeriu ligar pro meu pai.

— Vai que ele te ajuda — ela disse.

Vai quê.

 


 

Esta é a história da minha mãe, que tem transtorno bipolar tipo II. Pelo menos é o que eu acho que ela tem/tinha.

 


 

Eu nunca tinha andado de avião.

Chicken or pasta?

Encarei a aeromoça. Eu nunca tinha andado de avião. Ela me encarou de volta. Ela devia me achar burro. Era evidente pra ela. Pra moça que roncava ao meu lado. Pro homem que assistia filmes no laptop. Pro piloto. E pro aeroporto de Guarulhos que tínhamos deixado. Que eu nunca tinha andado de avião. Que eu nem sabia o que estava acontecendo. A aeromoça falava um português que me pareceu impecável:

— Frango ou massa?

 


 

E esta é a história que eu quero contar. A história de Olívia. Olívia tinha um emprego merdinha com Tecnologia da Informação, softwares e acessibilidade. É meio chato de explicar e a maioria das pessoas não entende de qualquer forma. Olívia é tão self-important e passa tanto tempo narrando a própria vida e recontando a própria história que Olívia às vezes narra a primeira pessoa em terceira. Não é uma ideia original, mas é definitivamente self-important.

Espera. Ficou confuso.

Escrever não é uma ideia original, mas é definitivamente self-important.

Olívia tinha uma condição que a fazia enxergar pouco. Desde os cinco anos de idade, as imagens começaram a escurecer nas bordas. Aos trinta e seis, ela era quase o que o governo brasileiro chama de cega legal. Quase. É meio chato de explicar, e a maioria das pessoas não entende de qualquer forma.

 


 

Entrei no chuveiro. Deixei a água correr pelo cabelo. Oleoso de viagem de quase vinte horas. Ar pra dentro. Ar pra fora. Água quente. Como o curintiano tinha dito que seria. Tinha dado a dica que era bom não esquentar demais. Porque a água demora a esfriar depois. Perguntei se ele sabia se eu mandasse um sms daqui ia chegar no Brasil. Ele disse que não sabia. A adolescente espinhenta disse que emprestava o laptop depois pra eu mandar e-mails. Descobrir as linhas de ônibus. Dar uma olhada em apartamentos.

Ver o Orkut. last.fm. Atualizar flickr. Carregar o iPod. Eu já tinha Facebook? Facebook tem todo mundo. Não só brasileiro e indiano.

Eu não tinha trazido sabonete ou xampu. Nem pro banheiro nem na mala. É tão bom tirar o suor do corpo.

Alguém bateu na porta. A dona da casa de família onde eu estava. Casa de uma grande família composta por três brasileiros. Dois gregos. Um americano. E o marido dela. As filhas gêmeas de onze anos. Ela falou qualquer coisa que eu não entendi. Mas envolvia twenty minutes e five minutes. Entendi, naquele sotaque que só poderia existir por crueldade, que eu deveria sair. E quando atravessei a porta do banheiro, ela estava parada no corredor de braços cruzados. Voltou a falar. Por sorte, eu realmente não entendia nada.

 


 

Por conta das transferências do meu pai, eu aprendi a chorar e odiar tudo em seis sotaques brasileiros diferentes. E o único pensamento que me manteve funcional durante isso foi o fato de que alguns dos melhores dias da minha vida não aconteceram ainda. Ou assim eu esperava.

 


 

Em qualquer comunidade no Orkut. Grupo de discussão. As pessoas falam do abuso de imigrantes. Em qualquer matéria retardada na televisão pra encher linguiça. E te convencer de que você tem que continuar na mesma vida de sempre. Falam de lavar louça. Todo mundo lava louça. Todo mundo lava chão. Todo mundo mimimi preconceito mimimi falar inglês. Nunca falam do fato de que tem brasileiros que mandam nisso. Tipo aqueles índios que eram auxiliares dos colonizadores. Como se chama aquilo? Nunca te falam da vez que te chamam pra cobrir o turno de um cara pra ser placa. Ramo de placas. Ele ficou doente um dia. Um teste, disse o imigrante das Ilhas Maurício que provavelmente coordena as coisas. Você se enturmou e tudo com todo mundo das Ilhas Maurício. Eles que mandam. E nunca te falam daquele garoto loirinho-loirinho com cara de bem-educado. E que provavelmente estudou uns três semestres de engenharia que te mostra um canivete suíço. Claramente comprado na Suíça. E te fala:

— Tu sabe que o Fernando tem dois filhos aqui, né.

— Sei sim.

— Tu sabe que ele tem família aqui e tudo.

— Sei sim.

E ele te mostra o canivete rápido de novo que você não vê muitos detalhes. Mas sabe que é uma ponta. E sabe que é uma ponta que vai entrar em você tão rápido quanto desapareceu. E o loirinho-loirinho olha pra você. E fala:

— Então seria uma pena se ele perdesse o emprego, ou se não pudesse vir amanhã.

Sendo que foi o próprio cara das Ilhas Maurício que chamou você. Viu você sendo uma placa ambulante. E disse que o Fernando faltava pra caralho. Como chama quando a pessoa é uma placa? Um sign worker? Bom. O cara das Ilhas Maurício achou que você era um garoto que corria bem. Mas você diz:

— Sei sim.

— Não quero mais te ver aqui.

E aí se aparecer uma equipe de televisão, você só fala que é difícil. Mas dá pra lidar.

 


 

Olívia escreve. Escreve pelo mesmo motivo que a mãe (a que foi enlouquecida) fotografava. Não pelo mesmo motivo que a mãe às vezes se trancava na câmara escura pra revelar fotos e só saía de lá no meio da noite seguinte. Mas a motivação era a mesma.

 

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