A melancolia autoirônica de “Avanti popolo”

No cinema

16.06.14

Para quem quer se refugiar um pouco da onipresença do futebol nestes dias de Copa do Mundo, nada melhor que a sala escura do cinema. Há, pelo menos nas metrópoles, opções para todos os gostos: blockbusters infanto-juvenis, globochanchadas, documentários candentes (JunhoRio em chamasSetenta), dramas lancinantes (RiocorrenteO lobo atrás da porta).

Mas quero falar de um filme pequeno e precioso, que parece em descompasso com tudo isso, e cuja ironia melancólica já começa no título: Avanti popolo, de Michael Wharman, uruguaio-israelense radicado em São Paulo.

O fio narrativo é tênue: num bairro de classe média baixa de São Roque, perto de São Paulo, o quarentão André (André Gatti) volta temporariamente à casa do pai solitário (Carlos Reichenbach), que há trinta anos espera a volta de outro filho, “desaparecido” pela ditadura militar.

Mundos em extinção

Na casa, que parece ter sido mantida intacta sob camadas de poeira e bolor, André encontra objetos da infância e juventude dele próprio e do irmão, em especial velhos rolos de super-8 que ele leva a um técnico para serem recuperados, de modo a tentar recuperar também um pouco do passado e compreender o seu sentido.

Mais do que o enredo, o que conta aqui é a criação de uma atmosfera de anacronismo, de tempo irrecuperável, de melancolia crepuscular – mas tudo isso modulado por um delicioso humor autoirônico.

Um dos achados do filme é permear a trilha sonora com um programa de rádio que toca antigas canções e hinos revolucionários de todo o mundo, velharias que assumem um caráter absurdo em nossos tempos pragmáticos e pós-utópicos.

Com uma câmera paciente, que deixa cair sobre cada plano, “tarkovskianamente”, todo o peso do tempo, o diretor centra seu foco em signos de mundos em extinção: filmes de super-8, fitas cassete, discos de vinil, as ruínas de um cinema de rua, hinos de nações desaparecidas.

Olhar perdido

É, de certa forma, um filme sobre a morte: a morte das utopias, a morte do cinema (ou de um certo cinema), a morte mais que provável do filho desaparecido.

Mas há uma morte ainda mais palpável que paira sobre tudo. A presença do cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) no papel do pai solitário acrescenta uma camada pungente de significação. Para quem o conheceu, Carlão encarnou como ninguém a paixão do cinema, sobretudo do cinema mais radical e libertário.

No filme, em total consonância com o papel, ele aparece abatido pela tristeza e pela doença cardíaca que o levaria alguns meses depois. Sem os óculos de fundo de garrafa que costumava usar, ele está com o olhar perdido, como se contemplasse um outro mundo, um tempo fora do tempo. É esse olhar, em mais de um sentido, que o filme de Michael Wahrmann procura captar.

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