Dois filmes vindos do leste – um do Japão, outro da Ucrânia – inundam as telas brasileiras com a dor humana. Ambos são de diretores estreantes e foram premiados em importantes festivais internacionais (o japonês em Berlim, o ucraniano em Cannes). E as coincidências param por aí. Não poderia haver dois filmes mais contrastantes que O desejo da minha alma, de Masakazu Sugita, e A gangue, de Miroslav Slaboshpitsky, sobretudo na maneira como encaram e expõem o duro destino de seus personagens.
O filme de Sugita é um drama delicado cujos protagonistas são uma menina de uns dez anos, Haruna (Ayane Ohmori) e seu irmão mais novo, Shota, que perderam os pais num terremoto. A ação começa justamente entre os escombros da casa da família. A catástrofe já aconteceu, e o que acompanharemos a seguir será o modo como cada um dos irmãos vai elaborá-la internamente.
Eis aí a discreta proeza de Sugita (que vivenciou, aos 14 anos, o terremoto de Hanshin, em 1995): embora toda a narrativa seja objetiva, exterior, expositiva, é pelos olhos das crianças que vemos a dolorosa reacomodação da vida, como quem observa placas tectônicas se reajustando depois de um cataclismo.
Eterno recomeço
São cenas do dia a dia de um recomeço: uma viagem de barco até a cidade dos tios que os acolherão como filhos; o primeiro dia na escola; a divisão dos espaços na nova casa; a relação problemática com o primo um pouco mais velho, até então “filho único”. Tudo visto como que de soslaio, por uma fresta de porta. E aquela faculdade de contemplação da paisagem física e humana (as estações, os elementos, as ocupações) de que os japoneses parecem mestres inatos – em alguma medida, todos filhos de Yasujiro Ozu.
Cena de O desejo da minha alma, de Masakazu Sugita
A dor irreparável da perda, a solidão absoluta, a angústia do que é incomunicável, tudo isso parece ganhar ainda mais pungência pelo modo singelo e silencioso como é mostrado. Ao mesmo tempo, uma serenidade a um passo da resignação parece pairar sobre o drama, suavizando-o. Talvez seja isso a tão buscada consciência zen de fluxo contínuo da existência.
A gangue
A compaixão (entendida como “participação espiritual na infelicidade alheia”) que transborda de cada plano de O desejo da minha alma parece totalmente ausente de A gangue. Aqui, predomina um retrato cru e implacável das piores características do comportamento humano em sociedade. Com uma singularidade que reforça o aspecto de parábola do relato: tudo se passa entre surdos-mudos de um internato.
A ausência absoluta de diálogos (tudo se comunica pela linguagem dos sinais) e de música cria um incômodo exacerbado pela duração dos planos, desde o primeiro, um enquadramento fixo em que vemos o adolescente Sergei (Grigoriy Fesenko) pedir num ponto de ônibus informações sobre como chegar ao internato. A imagem é perturbada pelos carros e ônibus que passam entre a câmera e os personagens, bem como pelo ruído dos motores. Uma senhora ajuda com acenos o rapaz – e este é praticamente o único gesto de gentileza que veremos no filme.
A partir do momento em que Sergei ingressa no internato, mergulhamos num mundo de relações viciosas em que estão presentes os problemas crônicos da sociedade contemporânea: violência, corrupção, roubo, tráfico, prostituição – tudo isso potencializado pelo confinamento e pela condição especial dos personagens. A violência segue num crescendo quase insuportável.
Paroxismo de brutalidade
A ideia de construir um microcosmo deformado da sociedade humana como pesadelo ou alegoria faz pensar em filmes como Também os anões começaram pequenos (1970), de Werner Herzog, ou Os meninos (1976), de Narciso Ibáñez Serrador. Mas há algo que soa demasiado artificial em A gangue. Depois do espanto das primeiras cenas, a mudez dos personagens – não apenas dos internos, mas também das pessoas com quem se relacionam extramuros – começa a revelar-se pouco mais que um truque, um estratagema concebido para isso mesmo, para causar espanto.
Cena de A gangue, de Miroslav Slaboshpitsky
Do mesmo modo, a simetria do relato, evidente na sequência final, que observa meticulosamente um paroxismo de brutalidade, parece trair no mínimo uma indiferença, no máximo um sadismo, diante do destino dos personagens. Mas talvez esta apreciação crítica esteja contaminada pelos sentimentos suscitados pelo outro filme, o japonês. Paciência. Os filmes são vasos comunicantes, e a emoção de um pode vazar para outro, como o som de uma sala invade às vezes a sala vizinha.