O Fluminense e meu tio

Correspondência

27.06.11

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Leia abaixo a primeira carta da correspondência entre o escritor Sérgio Sant’Anna e o jornalista e crítico José Geraldo Couto. Pelos próximos dois meses, ambos trocarão cartas semanais no blog do ims.

 

Caro José Geraldo,

Quis o calendário que eu escrevesse essa primeira carta para você um dia depois que o Fluminense ganhou do Avaí aí em Florianópolis. Aliás os resultados do Fluminense costumam determinar o meu humor nos domingos e segundas-feiras. Alguém poderia dizer: ganhar do Avaí de 1 a 0, o que tem demais? Tem que o Fluminense de ontem pareceu ressuscitar o time de guerreiros de 2009, ganhando na raça depois de ter um jogador expulso ainda no primeiro tempo.

Melhor ainda que nós dois estamos retomando um contato interrompido há anos, embora nesse tempo eu tenha lido várias crônicas esportivas ou críticas de cinema suas na Folha. Numa dessas crônicas tive a alegria de ver citado por você o meu conto No último minuto, que trata de um frango engolido por um goleiro no finzinho de um jogo final de campeonato, o que leva a perda do título por seu clube. Pior ainda  que, com os recursos da tecnologia, o próprio goleiro verá, já em casa, na tevê, de diversos ângulos e uma porção de vezes, a sua falha, como um suplício que ele próprio se impõe.

Não sei até que ponto a escolha de um goleiro como personagem teve a motivação inconsciente por eu ter tido um tio materno que foi goleiro do Fluminense. Já era época do profissionalismo, mas ele atuava no time amador, que  disputava uma segunda divisão. Na minha mesa de cabeceira guardo um pequeno retrato do time formado em fila indiana, com o meu tio à frente. Infelizmente não tenho a data, mas deve ser no início da década de trinta. Seu nome era Carlos, mas usava em toda parte, inclusive no futebol, o apelido de Secura, porque era seco por bola e praticava também outros esportes. Além disso era tocador de violão e criava uma serpente não venenosa, saindo com ela no bolso do paletó para assustar as pessoas no bonde. Mas o destino fez com que morresse aos vinte e cinco anos, de tuberculose, quando era acadêmico de medicina.

Morreu o tio Carlos antes de eu nascer, mas eu o sentia como uma presença na família, um verdadeiro mito lá em casa, e minha mãe e minha avó estavam sempre contando histórias sobre ele. Ah, como teria sido bom se eu crescesse com ele ainda vivo, mais um tricolor querido para ir com a gente aos estádios

Não é arbitrário eu começar essa correspondência com você, José Geraldo, falando do Fluminense e de meu tio, pois ontem o Fluminense venceu aí em Florianópolis, o time já com a cara do Abel, um grande técnico e um grande cara, capaz de empolgar um time e sua torcida. E vou contar a você o que pouca gente sabe a meu respeito. Nos dias em que o meu time está passando por momentos difíceis em jogos importantes, invoco o meu tio Carlos, para que dê uma mãozinha, esteja onde estiver, o que significa que eu pelo menos admito que há vida depois da morte. E que o pessoal do lado de lá não só torce por times como influi nos resultados,  vide o Gravatinha e o Sobrenatural de Almeida, criaturas do grande tricolor Nelson Rodrigues. Invoco também minha mãe e minha avó, que iam com a gente ao estádio de Laranjeiras quando eu era pequeno. Ser Fluminense em minha família é uma tradição que passa de pais para filhos. E quando meu pai começou a namorar minha mãe ele era sócio do Vasco, mas foi imediatamente aliciado para trocar de time.

Os espíritos que invoco são espíritos do bem, mas quem já não pensou em invocar o diabo? Não acredito no demo, mas não me arriscaria a invocá-lo em nenhuma circunstância, nem mesmo por uma causa nobre como o amor ao Fluminense. Mas há um porém, aliás sempre há um porém

Eu tinha outro tio materno, quase desnecessário dizer que tricolor fanático. Além disso, mulherengo, gozador e várias  vezes diretor do clube e muito querido dos jogadores. Junto com ele pude bater papo com o grande mestre Didi, um dos maiores meios-de-campo de todos os tempos, como você sabe. Elegante até para andar na rua, com seu porte sempre ereto, como nos momentos da passar a bola.

Esse meu outro tio, Luiz, era completamente ateu, mas costumava atazanar minha mãe, catolicíssima, dizendo que invocava, na vida, os poderes do Caboclo Sete Rampas. Em jogos do Fluminense, como já disse, invoco os mortos da família, faço o sinal da cruz, rezo ave-marias e por aí vai. Tudo pelo Fluminense e devo confessar que muitas vezes não deu certo. Aí um dia, há alguns anos, me deu o estalo: vou invocar o  Caboclo Sete Rampas, ele não é o demônio. E tivemos vitórias sem fim sob a sua proteção. Isso aconteceu quando o famoso time de guerreiros escapou milagrosamente de cair para a série B, em 2009. E no brasileirão de 2010, quando fomos campeões, com um time apenas razoável.

Mas neste ano de 2011 parecia que nenhum santo ou caboclo conseguiria dar jeito num time de pernas de pau. E estava eu preferindo ver o Santos de Neymar, jogador cuja principal característica é a leveza, aquela mesma que Italo Calvino tanto prezou. Só que ontem, José Geraldo, de repente vejo outro time entrar em campo. Estava jogando bem, o maior toque de bola, quando Rafael Moura, o He-Man, foi expulso, ainda no primeiro tempo. Aí restava a luta, a confiança transmitida pelo Abel e, naturalmente, os espíritos. José Geraldo, digo a você que ontem esteve em campo, aí em Floripa, também o Caboclo Sete Rampas, por mim invocado desde Laranjeiras, bairro em que moro.

Um grande abraço.

Sérgio

 

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