Chegamos ao dia seguinte. E o Rio perde o sentido de existência que o moveu pelos últimos seis anos e meio. A análise histórica, de tão repetida, já se banalizou: desde que a cidade passou a ser uma ex-capital da República, foram décadas titubeando em longos períodos de decadência, até o belo 2 de outubro de 2009 quando nós, incrédulos cariocas, vimos que aconteceria o até então improvável – sediaríamos as Olimpíadas. E sediamos.
Nos meses após o anúncio, os Jogos Olímpicos eram propagandeados como a grande panaceia a redimir o Rio de Janeiro de seus problemas crônicos (e quiçá os do país em pleno “espetáculo do crescimento”). Meia dúzia de anos depois, às vésperas do regabofe global, a expressão mais usada era “oportunidade perdida” – um neoclichê apropriado até pelo alcaide tagarela. Vale duvidar se de fato essa era uma oportunidade ou, ao menos, refletir sobre que tipo de oportunidade era essa.
Foi a chance de dividir um trem da Central do Brasil com finlandeses, quenianos, japoneses e vendedores de salgados e balinhas. A rara ocasião em que vi entrarem no metrô da Saens Peña, pelas 8 da manhã, duas irmãs com camisas bregas reproduzindo a bandeira dos Estados Unidos, para logo depois, ainda no Estácio, chegar uma família de comedidos alemães também em direção à estação General Osório. Em um ônibus lotado cortando a avenida das Américas, uma torcedora com jaqueta do time russo e outra enrolada à bandeira da Ucrânia se esbarravam sem o menor conflito.
É necessário reconhecer que o que se passou aqui nas últimas duas semanas foi muito divertido e importa de verdade. Prova disso é a judoca do Kosovo ou o nadador de Cingapura que apresentaram suas medalhas aqui conquistadas para multidões orgulhosas nas praças públicas de países com população muito menor que a cidade do Rio. Contudo, ao mesmo tempo em que o Engenhão preparava-se para receber um jamaicano que viria a protagonizar os quase dez segundos mais importantes da existência do estádio, a poucos quilômetros dali o corpo de um jovem morto em uma operação policial era estendido em protesto no meio de uma avenida.
O Rio de Janeiro mudou e não mudou. Na presente década, houve muita construção, demolição, desapropriação, deslocamento. Há uma fragmentação de projetos e obras, conclusos e inconclusos, alguns muito relevantes, outros que são pura especulação imobiliária temperada com marquetagem. E muitas áreas mantiveram-se tal como estavam há 10 anos, talvez com um pouco mais de degradação: melhor exemplo disso é o programa Morar Carioca, que selecionou 40 escritórios de arquitetura para promover intervenções urbanas em favelas da cidade, porém a maioria dos arquitetos nem começou a projetar, e praticamente não se fez obra urbanística nessas comunidades. Quando não houve as tantas remoções.
A desigualdade social carioca permaneceu e, na verdade, o Comitê Olímpico nunca quis resolvê-la. Para os que tiveram a ilusão da salvação social, sediar Olimpíadasé uma péssima estratégia. Os Jogos proporcionam transformações para que a cidade seja capaz de abrigar uma quantidade enorme (e atípica) de visitantes, oferecendo a quem fica uma convivência rica (e atípica) com pessoas de literalmente todo o mundo. Com grande parte dos gringos tendo retornado pelo Galeão, deve-se avaliar que mudanças serão ou não incorporadas ao cotidiano carioca. O que foi feito para o evento é uma intrincada totalidade. Importa-nos agora, nesses dias seguintes, o que fica e como fica.
Duas quedas
O mês de abril de 2016 ficou marcado pelo desabamento da recém-inaugurada ciclovia da avenida Niemeyer. Para além da fatalidade, o fato explicita os problemas endêmicos da construção civil brasileira – o desregulado pêndulo entre o lucro e o desenho – e os métodos equivocados de contratação de projeto pelo poder público.
Se, por um lado, tivemos essa absurda queda fatal, há outra queda que merece destaque. Nesse caso, uma queda programada. A demolição da Perimetral é a principal obra olímpica e o grande projeto urbano feito no país no presente século. É o ponto de inflexão para a mudança de um paradigma nacional.
Desde os anos 1950, as cidades brasileiras crescem com uma ênfase rodoviarista. Para dar rapidez ao transporte individual no Rio, construiu-se uma via expressa elevada que sobrepujava o tecido urbano do núcleo histórico, estragando sua relação com a Baía de Guanabara que o circunda. Para muitos municípios e estados, a imagem de progresso ainda é essa multiplicação de autopistas, enquanto até hoje o governo federal dá incentivos singulares à indústria automobilística.
O desmonte da Perimetral permitiu a reapropriação do solo urbano pelo pedestre. Foi inegável o sucesso da Orla Conde em seus dias de “Boulevard Olímpico”, quando grandes massas populares reocuparam a borda do centro da cidade. Aproveitou-se a chance de rever a margem da Baía de Guanabara a partir da praça Mauá, podendo de lá andar até a Praça Quinze, contornar o morro de São Bento e passar pela Candelária, que volta a estar de frente para a água. Ou seja, as virtudes devem-se mais a predisposições naturais do lugar do que a um desenho específico do calçamento. Pode-se até debater o novo desenho urbano, o piso, seus materiais e o espaçamento entre árvores e canteiros de plantas, porém o fundamental, em termos urbanos, é a primazia do pedestre, coabitando aquele espaço apenas com novos bondes (ou sua chique sigla, VLT) em tranquila velocidade.
Poderia-se elogiar a Orla Conde como a retomada de uma cultura arquitetônica carioca de excepcionais projetos de espaços públicos, como o calçadão da praia de Copacabana e o Aterro do Flamengo. Contudo, basta olhar para a área olímpica da Barra da Tijuca (isto é, Jacarepaguá) e constataremos que priorizar pedestres – o que significa, acima de tudo, a valorização da vivência e da convivência no espaço público – não é uma politica para toda a cidade.
O projeto olímpico bipolar
Na cerimônia de abertura, o belo voo imaginário do 14-bis curiosamente não chegou até o Parque Olímpico da Barra, nem mesmo atravessou o morro Dois Irmãos. A região que mais recebeu investimentos e com o maior número de instalações esportivas não estava na apresentação virtual da “Cidade Maravilhosa” pelo alto. Será que a área olímpica, às margens da lagoa de Jacarepaguá, fica longe demais até para um avião fictício?
Como quase tudo que concerne o Rio atual, a complexidade tende a revelar contradições.
O Parque Olímpico e a Vila dos Atletas ficam na Zona Oeste, a região mais populosa do Rio de Janeiro e com as áreas de pior índice de desenvolvimento humano. Também é verdade que Lucio Costa percebeu há meio século que o centro geográfico do município (para lá idealizou um novo Centro Metropolitano) é muito próximo do Parque Olímpico.
O erro desse projeto não é o local em si. Mas o fato de que sua escolha se deu por um desejo imobiliário de valorização da terra, como o Guardian e a BBC bem escancararam nas constrangedoras matérias com o dono da construtora Carvalho Hosken. É o raciocínio retrógrado do espraiamento das cidades em uma interpretação tupiniquim da suburbanização americana.
Se a demolição da Perimetral e a construção da Orla Conde parecem simbolizar o desejo por uma cidade densificada, mais compacta, que aproveita seu patrimônio construído e a infraestrutura existente, vemos o oposto na Barra da Tijuca: áreas desocupadas até pouquíssimos anos atrás, pertencentes a incorporadores ávidos por realizar lucros estratosféricos com enormes glebas compradas há décadas por preços irrisórios.
Uma das maneiras de analisar o papel do poder público nesse caso é observar o sistema de BRT (ônibus em faixa exclusiva), solução inteligente e barata para ampliar a malha do transporte de alta capacidade. O eixo Transcarioca, muito positivamente, atende e requalifica vários bairros do subúrbio deixados em segundo plano durante quase todo o século passado. Já os eixos Transolímpica e Transoeste escancaram a lógica do desbravamento de terras, com diversas estações em áreas ermas (mas com proprietários no cartório).
E, por mais que os BRTs tenham sistematizado o transporte público, o que aumentou mesmo na Zona Oeste foram o número de faixas para carros e os engarrafamentos. Nos últimos anos, foi construído um número considerável de pequenas “perimetrais” nessa região.
Soma-se a isso o fato de que as distâncias entre os prédios recentes continuam grandes demais para serem percorridas em caminhadas cotidianas. O bom funcionamento do transporte para o público dos Jogos, que se deslocava expressamente da Zona Sul ao Parque Olímpico, deve-se a uma condição exclusiva em que um bilhete diário custava 25 reais e a entrada na nova linha de metrô dependia da apresentação de ingresso para alguma competição. No dia a dia, este será um deslocamento pendular que consumirá uma quantidade enorme de tempo e energia dos passageiros.
Devido à matriz do desenho urbano da Barra que foi ratificada nessa preparação olímpica, dirigir um carro continuará a ser mais atrativo ali do que usar o transporte público ou caminhar e aproveitar a vida de uma calçada (isto é, do espaço público). A demolição da Perimetral para dar espaço à Orla Conde e a escolha do local de implantação do Parque Olímpico são plenamente antagônicos. Tivemos um projeto olímpico bipolar.
Ilhas puras
Nos dias que antecederam as Olimpíadas, as manchetes foram ocupadas pelos problemas na construção da Vila dos Atletas. Esportistas deixaram os prédios e pedreiros, eletricistas e encanadores chegaram para consertos de última hora. Terminada a Paralimpíada, depois de abrigar pessoas de mais de 200 países, a Vila Olímpica assumirá seu verdadeiro nome: Ilha Pura. Um nome racista, segregacionista e antiurbano, porém coerente com seu projeto.
O Ilha Pura não é nada inovador. Mais um condomínio-clube, envolto por longos muros que estragam a calçada do lado de fora (caso ela exista), relacionando-se com a cidade por uma portaria repleta de seguranças para proteger moradores de apartamentos com varandas-gourmet. Propagandas de edifícios como esses são majoritárias nos cadernos de imóveis dos jornais brasileiros. Com 31 prédios de quase duas dezenas de andares, que totalizam 3.604 unidades habitacionais, o Ilha Pura merece destaque por de fato se transformar numa ilha apartada de qualquer vinculo de urbanidade com seus arredores. Afinal, segundo Carlos Carvalho, ali “precisava ser moradia nobre, e não moradia para os pobres”.
Tal infeliz opção de abrigo para os atletas olímpicos desconsidera uma oportunidade óbvia numa cidade com um brutal déficit habitacional. O Ilha Pura segue o modelo mais danoso às das malhas urbanas brasileiras.
Já no Parque Olímpico, o curvilíneo eixo principal tem um desenho gracioso, correto na destinação prioritária aos pedestres e, sobretudo, nas suas proporções (por ali passaram confortavelmente 100 mil pessoas por dia). Depois das Paralimpíadas, dificilmente essa larga aleia receberá um público próximo ao de seus dias de glória. Por isso, serão necessárias adaptações, como aumentar a arborização e criar mais núcleos de lazer, isto é, transformá-lo em algo mais parecido a um parque comum. O bom desenho original facilmente incorpora tais alterações e, de certo modo, já prevê isso. Basta que o executem sem que o COI cobre constantemente.
Por sua vez, os novos ginásios do Parque Olímpico são projetos que, em primeira instância, cumprem as muitas regras que comitês e confederações esportivas impõem em termos de dimensão de área de jogo, número de assentos nas arquibancadas, aparelhamentos para cumprir particularidades ambientais. Tendo isso em vista, há uma certa padronização com as configurações internas de Olimpíadas anteriores. Arquitetos acabam tendo certa liberdade em algumas definições estruturais e, sobretudo, na sua pele. Nesses envelopamentos das arenas permanentes foram usados materiais de catálogo – isto é, nada de extraordinário, nem de ruim. Pequenos problemas na circulação do público nas Arenas Cariocas e no estádio de tênis têm a gênese nos seus respectivos projetos, sem maior gravidade. Mais uma vez, a maior falha está no acabamento de péssima qualidade das construtoras: é visível a ausência de esmero da construção civil. Nesse aspecto, somos realmente subdesenvolvidos.
Temendo uma repetição de Atenas 2004, muitos veículos da imprensa questionam a prefeitura sobre o que será feito dos ginásios e estádios. Há que se perguntar isso mesmo, porém não é o fundamental. A vitalidade do Parque Olímpico depende mais do que se fará nas áreas ocupadas por monumentais planos asfaltados, seja para estacionamento, seja para lojas temporárias e praças de alimentação. Como foi feita uma parceria público-privada (PPP) para executar o Parque Olímpico, esses terrenos de ocupação provisória durante os Jogos estarão nas mãos dos mesmos entes do setor privado que fizeram o Ilha Pura.
Ou seja, construiu-se um enorme espaço com qualidades suficientes para ser um bom parque público, porém as áreas a construir após o evento estão nas mãos de quem fez o mais absurdo condomínio-clube. Daí se entende o motivo da brutal remoção da Vila Autódromo. Se reproduzida a lógica projetiva de praticamente todo prédio habitacional da baixada de Jacarepaguá, o legado do Parque Olímpico irá para o lixo. Diante do risco de ele se transformar em mais um condomínio fechado, caberá à população carioca fazer o que não se fez há sete anos: um debate de verdade para cobrar o que será realizado ali. Será mesmo um parque público? Esse parque terá grades com controle de acesso? Onde pretendem colocar os muros que separarão os prédios do eixo curvilíneo? A boa resposta para a última pergunta é que não haja muro algum. Se houver, o Parque Olímpico estará fadado a virar um Ilha Pura 2.
É preciso retornar à análise da Zona Portuária, mais especificamente ao dito “Porto Maravilha”. Afinal, se a Orla Conde merece elogios, não se pode deixar de notar que os bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo têm parte considerável de seus grandes terrenos e galpões sem uso. Andamos por quarteirões na bela via de pedestres e bondes e, por enquanto, vemos muros com grafites interessantes, mas não há lojas, botecos, casas de suco ou restaurantes. E pode ser que nunca haja.
Mudam as construtoras, mas a mentalidade é similar. Os magnatas do consórcio Porto Maravilha têm em mente reproduzir ali o pior da arquitetura paulistana: uma neo-Berrini com torres espelhadas cheias de lajes corporativas, com térreos sem qualquer atividade urbana, numa relação elitista à la Ilha Pura. Não é difícil encontrar relatos de agressivas ações da PM e da guarda municipal nessa região, já em busca de tal “pureza”. Assim, apesar dos esforços dos órgãos de patrimônio, a gentrificação (silenciosamente desejada pelos executivos-proprietários) coloca em risco de extinção, a médio e longo prazo, a cultura singular dos morros da Providência e da Conceição,além do Valongo e da Pedra do Sal. Até o momento, outro problema dessa PPP “Maravilha” é a falta de mistura de usos, em especial de habitações. Em suma, a manutenção da nova vitalidade da Orla Conde parece depender do fracasso do Porto Maravilha.
Hora de desmontar
Aliás, não teria sido melhor construir a Vila dos Atletas na Zona Portuária? Ou pelo menos transferir algumas instalações esportivas do Parque Olímpico para os terrenos desocupados em ruas reurbanizadas próximas ao porto? Como, por exemplo, o ótimo projeto arquitetônico da arena de handebol, interessante durante o evento e ainda mais notável quando sua estrutura der origem a quatro escolas públicas.
A prefeitura quis batizar como “arquitetura nômade” tais estruturas desmontáveis que serão convertidas para funções mais cotidianas. Independente do nome dado, o que é interessante na teoria não resulta necessariamente em bom projeto.
Em frente à arena de handebol, o estádio de natação coleciona bizarrices. Se a remontagem do primeiro equipamento é de fácil compreensão, o caso do segundo é mais duvidoso. Nessa arena aquática está o mais grotesco erro arquitetônico das Olimpíadas: o conjunto de quatro pilares passando no meio da arquibancada. Mesmo com a vista extremamente prejudicada para a piscina, ainda colocaram cadeiras atrás das parrudas colunas. Não há justificativa de custo ou cálculo estrutural para esse erro crasso de projeto. Se já não fosse o bastante, optou-se pela lógica do galpão decorado: as fachadas foram recobertas com finas telas impressas com uma reprodução do “Celacanto provoca maremoto” de Adriana Varejão, permanentemente exposto em Inhotim. Parece-me questionável um trabalho artístico virar banner publicitário para esconder as estranhas entranhas de um estádio de natação, tanto quanto uma arquitetura se apropriar de uma obra existente a fim de buscar alguma relevância. O uso decorativo é tão duvidoso que ventos fortes rasgaram a lona em pelo menos duas ocasiões, e isso não fez diferença alguma.
As arquiteturas presentes na Olimpíada apresentavam com frequência algo omitido em todas as perspectivas eletrônicas antes do evento. Em frente a qualquer zona esportiva havia tendas, lonas tensionadas, gazebos plásticos para abrigar aparelhos de detecção de metal, guardas de controle de acesso e voluntários com máquinas portáteis de verificação de ingresso. Estes são poluidores das fotos e selfies tão caras a um evento midiático na presente era.Na mesma toada simplória estavam os quiosques metálicos para venda de alimentos e as gift shops. Fato é que arquitetos (e sua respectiva academia) precisam assumir que essas negligenciadas estruturas de apoio também são sujeitas a projeto.
Isso também não quer dizer que os stands das empresas patrocinadoras no Parque Olímpico são exemplos positivos: pirotecnia colorida gratuita para atrair novos clientes e tentar competir com a arquitetura dos ginásios. É o mal daquilo que está entre a arquitetura e a publicidade em busca de resultados pretensamente criativos.
Essa miríade de instalações provisórias é a essência da arquitetura olímpica. Pelo plano original, quase tudo ainda deveria ser vestido com o look of the games. Vigas, postes, paredes-cegas, guarda-corpos, mesas de árbitros e imprensa receberiam banners e painéis com o design gráfico a dar uma identidade aos Jogos do Rio. Tudo isso é feito mais para os espectadores da televisão do que para o público presente. Entretanto, notou-se uma falta de fôlego no fim da organização carioca, e várias vigas com concretagens tortas permaneceram desnudas. Caso isso não explicitasse mais uma vez a péssima construção civil já aqui criticada, a falta da “imagem dos jogos” até poderia ser uma virtude: a arquitetura das arenas esportivas falando por si, sem badulaques efêmeros.
No fim, a boa “arquitetura nômade” do ginásio de handebol acaba por ser uma exceção. Uma tosca passarela feita de andaimes numa organização quase ilógica liga o novíssimo (e decente) terminal de ônibus de Jacarepaguá ao Parque Olímpico. Por que não se contratou alguém para fazer uma estrutura provisória que pelo menos demonstrasse certo esforço na concepção? Aqui não cabe aceitar justificativa de falta de verba: a falta foi de inteligência para a solução decente. Fato é que essa mambembe passagem elevada temporária era o primeiro e o último look of the games na visita ao Parque Olímpico.
Mobilidade desigual
O percurso de transporte público entre a Zona Sul e o Parque Olímpico recebeu elogios por seu bom funcionamento no período do evento. Apesar de inaugurada na semana da cerimônia de abertura, o metrô operou bem, impressionando por realizar a antes improvável chegada à Barra. No Jardim Oceânico, ônibus articulados saíam a cada minuto. Para todos os portadores de ingressos e bilhetes de 25 reais, o transporte olímpico funcionou às maravilhas.
Contudo, a desigualdade de tratamento era explícita quando, de dentro do ônibus olímpico, passava-se pelo terminal Alvorada – que coabita o antigo Cebolão com a Cidade das Artes – e via-se as gigantescas filas de espera dos ônibus de quem não fez parte das Olimpíadas.
Isso não é uma exclusividade do BRT. Embora seja muito simpático andar no novo bonde pelo Centro (para pegar a ponte aérea no Santos Dumont é estupendo), quem usar o metrô da Cinelândia em direção à Central continuará sendo tratado como sardinha enlatada no horário do fim do expediente. Tal como acontece há mais de uma década.
Foi ótimo ir ao Engenhão ver Usain Bolt ou um maravilhoso clássico do futebol entre Argélia e Honduras. Os vagões são novíssimos. As estações de Engenho de Dentro, Maracanã e São Cristóvão têm novos projetos corretos. Entretanto, a edificação da Central do Brasil permanece decadente e com sinalização ilógica. E dói ver a condição de muitos trens que rumam, por exemplo, a Belford Roxo.
O Rio de Janeiro teve avanços no transporte público nos últimos anos. Apesar de sobrecarregado, o BRT Transcarioca é uma sistematização necessária. Apesar de muito úteis à especulação imobiliária, os BRTs Transoeste e Transolimpica também contemplam regiões carentes. Apesar dos custos estratosféricos e dos exageros das estações de Ipanema e Leblon, a ligação do metrô à Barra da Tijuca é imprescindível.
Porém, as melhorias de certo modo ampliaram a desigualdade entre os cariocas. Durante as últimas duas semanas, quem tinha a passagem olímpica teve direito a uma condição especialmente melhor: trens superiores, linha de metrô exclusiva, ônibus expresso, em suma, um tratamento distinto. O problema é que nos próximos dias, meses e anos, os novos eixos de transporte não equalizarão tais desequilíbrios na prestação de serviços. Afinal, ligar a Zona Sul ao Jardim Oceânico é aproximar duas regiões ricas. Por sua vez, a Transcarioca não tem trilhos, nem ônibus na frequência necessária. E a história indica o quão difícil é acreditar na melhora de todos os trens para Belford Roxo. Contudo, o caso do metrô também serve de indicativo: para superar a desigualdade, é preciso cada vez mais perfurar os morros, mas agora criando ligações entre bairros no eixo norte-sul do Rio.
Belos patinhos feios
Um dos projetos mais bem sucedidos do Rio olímpico nada tem a ver com as competições da Olimpíada. O Parque de Madureira é um caso ainda subestimado por críticos paulistocêntricos e pesquisadores de arquitetura no Brasil. Mesmo sem um desenho arquitetônico relevante, a apropriação do parque pelas pessoas deve ser comparada ao caso do Sesc Pompeia de Lina Bo Bardi. Justifica-se isso pela sede por opções de lazer da gigantesca população de Madureira e dos arredores do ainda mal tratado subúrbio carioca. Eles deixaram de ter que pegar um ônibus cheio e demorado para ir à praia nos bairros chiques aos fins de semana. A água para se banhar e refrescar está na vizinhança. A qualidade dos equipamentos inverte o fluxo de cariocas em busca de divertimento. Todavia, não nos iludamos: os moradores de Madureira permanecem sedentos por outros serviços básicos que estão longe de ser satisfatórios. Sedentos por serem tratados como cidadãos.
Deodoro também merece destaque positivo, mais pelo imponderável do que pelo plano original. Da lista de absurdas demandas olímpicas, destacava-se o reservatório com cerca de 25 mil m3 de água para as corredeiras artificiais da canoagem slalom. Milhões de reais gastos para 5 dias de uso e um número pequeno de atletas.
Contudo, no verão de 2015, em dias de calor inclemente, os moradores do pobre bairro vizinho de Ricardo de Albuquerque começaram a invadir a área do não inaugurado Parque Radical, fazendo do tanque de canoagem um monumental “piscinão”. A prefeitura percebeu o justo potencial e abriu o espaço ao público antes mesmo da Olimpíada. Nessa apropriação fortuita, o desconhecido equipamento olímpico acabou por se tornar a mais popular das áreas de competição.
Passado o prazo de validade do que motivara tantas transformações no Rio de Janeiro, a cidade entra nos dias mais relevantes para quem aqui permanece.
Parte do legado é a decretação do estado de calamidade pública do governo fluminense, os milhares de servidores sem salários em dia, a UERJ e o sistema de saúde em frangalhos. Além disso, a Baía de Guanabara permanece poluída. A segurança pública continua ocupando manchetes e postagens. E, como era previsível, a desigualdade entre os cariocas não foi solucionada com o ciclo olímpico.
Em meio ao que foi construído de bom e ruim para os Jogos, a cidade precisa lidar com as contradições e incoerências. Há ainda muito em jogo no tecido urbano carioca. Apagar a pira olímpica não quer dizer que chegamos a uma conclusão.