O diabo entre nós

No cinema

29.07.16

Muito se tem falado sobre a incipiência na cinematografia brasileira do chamado “cinema de gênero”. Com exceção das comédias, setor hoje dominado pelas produções Globo, os gêneros clássicos (policial, suspense, musical, ficção científica, terror etc.) não costumam ser praticados entre nós com alguma continuidade e consistência. Nesse contexto, ganha relevância um pequeno grande filme, O diabo mora aqui, dos estreantes em longa-metragem Rodrigo Gasparini e Dante Vescio.

Não que não tenha havido, em tempos recentes, incursões no terror por parte de jovens cineastas. O caso mais notável é o dos paulistas Marco Dutra e Juliana Rojas, que fizeram juntos Trabalhar cansa e, separados, Quando eu era vivo (Dutra) e Sinfonia da necrópole (Juliana). Mas, no caso deles, verifica-se um certo distanciamento crítico, autoirônico, com relação ao gênero e suas convenções.

Terror visceral

Em O diabo mora aqui, ao contrário, a abordagem dos também paulistas Vescio e Gasparini é mais, digamos, visceral, mergulhando por completo na iconografia, na mitologia e nas regras básicas do gênero.

Na história de quatro jovens (dois rapazes, duas garotas) que vão passar um fim de semana numa isolada casa de fazenda, há fantasmas, mortos-vivos, possessão, mediunidade. À primeira vista, é um terror juvenil. Observando melhor, vemos que é um terror adulto protagonizado por jovens.

Quando se fala em “aclimatar” gêneros consagrados às condições brasileiras, pensa-se logo em elementos de “cor local” (paisagem, humor paródico, signos da nossa cultura). Aqui entra uma das grandes sacadas dos realizadores de O diabo mora aqui. O que pode haver de mais profundamente brasileiro que a herança da escravidão, da opressão e dos desmandos de uma oligarquia impiedosa?

E é isso o que essa trama de terror concentrada numa única noite e vivida por poucos personagens traz à tona com uma força desconcertante. Sem antecipar as surpresas e reviravoltas do enredo, o que se pode dizer é que a viagem de lazer dos quatro jovens literalmente desencavará fantasmas de um passado histórico terrível, protagonizado por um tirânico “barão do mel” (Ivo Müller) e pelo escravo que o desafiou (Sidney Santiago).

Mostrar e esconder

Tornar críveis e envolventes as situações mais sobrenaturais é algo que os diretores conseguem ao manipular com uma segurança impressionante para estreantes as ferramentas básicas do gênero: ações paralelas, enquadramentos não raro oblíquos, câmera subjetiva na mão ou em steadycam, iluminação bruxuleante (de velas, lampiões, telas de celulares, pisca-alerta de carro) deixando zonas de sombra e fazendo o espaço pulsar e os objetos ganharem vida.

Esse amplo arsenal (que inclui um tratamento preciso do som) não é usado de modo exibicionista ou desordenado, mas obedecendo sempre à diretriz essencial do suspense, que é a dialética entre o que mostrar e o que omitir, deixando espaço para a imaginação do espectador. É na mente e na sensibilidade deste último que o terror se potencializa.

Outro alento trazido pelo filme é a tremenda competência do elenco jovem. Com exceção dos citados Ivo Müller e Sidney Santiago e também de Pedro Carvalho (no papel do dono da casa), os protagonistas são estreantes ou quase: Mariana Cortines, Diego Goullart e Clara Verdier, como os visitantes da cidade; Pedro Caetano e Felipe Frazão, como os descendentes do escravo rebelde.

Desnecessário dizer que um filme com esse perfil teria um potencial de público muito grande, se nosso mercado exibidor não estivesse tão estrangulado pelos blockbusters americanos e nacionais (leia-se globais).

Mas também nisso O diabo mora aqui traz uma novidade. Está estreando em Brasília e Porto Alegre no habitual circuito Itaú. Mas em São Paulo, além do Itaú Frei Caneca e do Caixa Belas Artes, outras quinze salas espalhadas pela cidade, sobretudo na periferia, exibirão o filme a preços populares. Elas fazem parte do circuito SPCine, iniciativa pioneira que, se for bem sucedida, poderá significar uma ampliação e um arejamento do circuito para além dos shopping centers e multiplexes.

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