Os olhos irreais de Rouch

Cinema

12.03.14

Os dois filmes são bem diferentes entre si, mas de certo modo o segundo, Cocorico! Monsieur Poulet (1974-1975), para o diretor “a filmagem mais divertida de minha vida”, é uma continuação do primeiro, A pirâmide humana (1959-1960). Ou uma consequência do primeiro. Ou, ainda, uma ampliação do primeiro. A estrutura de composição esboçada lá é retomada aqui, como é possível observar mais facilmente quando os dois filmes aparecem lado a lado, como na presente edição em DVD da coleção IMS.

Essa conversa do Rouch da metade da década de 1970 com o Rouch do final da década de 1950 vai em busca de um modo de fazer cinema que logo em seguida gerou o documentário realizado em parceria com Edgar Morin, Crônica de um verão (1960). Em Abidjan, no prólogo de La pyramide humaine, Rouch combina com estudantes de uma escola secundária fazer um filme entre a ficção e o documentário para discutir o preconceito racial entre europeus e africanos. Discute o quê e o como filmar, sem roteiro, sem diálogos e cenas previamente escritas. As falas e as ações seriam livremente improvisadas. Em Paris, no prólogo de Chronique d?un été, Jean Rouch e Edgar Morin discutem o tema e o modo de realizar o filme: para documentar o verão parisiense uma pergunta breve e direta para surpreender as pessoas na rua – você é feliz? – e conversas mais longas em torno de uma mesa, depois de uma refeição.

Na cena final, nos dois filmes, uma análise da experiência vivida durante as filmagens. Depois de terminar Crônica de um verão começa de novo (quase poderíamos dizer, começa enfim, como se tudo o que veio antes fosse apenas um prólogo para a reflexão contida nesse curta-metragem): Rouch e Morin conversam com seus personagens, e depois entre si, para avaliar o processo de trabalho. Em A pirâmide humana, terminada a história de Nadine, Raymond, Alain, Denise, Jean Claude, dos estudantes franceses e africanos do liceu de Abidjan, Rouch conversa com os seus botões: o que importa, de verdade, não é o filme, nem seu diretor, nem seus personagens. Importante não é o produto, mas o processo: “graças ao filme aqueles jovens aprenderam a se conhecer com suas qualidades e defeitos”. Importante mesmo é a experiência adquirida pelas pessoas que participam do filme, diretamente, na filmagem, e indiretamente, na projeção.

É a partir desse ponto de vista que talvez faça sentido falar de um cinema-verdade em relação aos filmes de Jean Rouch. Eles não são um registro fiel da realidade material que existe diante da objetiva e independente dela, mas uma intervenção na realidade material imediatamente visível para gerar uma realidade interior nos personagens filmados e nos espectadores. A câmera de A pirâmide humana provoca uma cena de ficção mas não controla a cena depois que ela se põe em movimento. A partir desse momento, a ficção é que aciona a câmera, tal como uma cena real conduz a câmera de um documentário. Os personagens não propriamente representam, eles participam de uma cena viva – viva, embora apenas sombra da que vive de verdade na imaginação do espectador. Essa cena entre a ficção e o documentário transporta as pessoas filmadas, e também a pessoa que filma, para uma realidade-outra. Nela os intérpretes naturais a rigor não interpretam, vivem a si mesmos em situações não ensaiadas; e também o homem com a câmera vive a si mesmo, no centro do acontecimento, ao mesmo tempo testemunha e participante. Não se reduz a um profissional que faz cinema. O processo de A pirâmide humana (não somente esse, mas especialmente esse) ensinou Rouch a desenvolver seus temas com a leveza de quem joga conversa fora, tal como acontece, por exemplo, em Cocorico! Monsieur Poulet.

Os adolescentes do liceu de Abidjan jogam conversa fora em torno de uma qualquer coisa – a carcaça do navio encalhado na praia, o baile, a festa, o passeio de bicicleta, o banho de mar, a aula de francês: Baudelaire, Rimbaud e em especial Paul Éluard, escravo de seus olhos (je devins esclave de la faculté pure de voir), escravo de seus olhos irreais (esclave de mes yeux irréels et vierges). Rouch, também na escola, ao mesmo tempo professor e aluno, estuda como filmar com os olhos de Éluard.

Nesses muitos aparentes desvios o filme jamais se afasta da questão anunciada no prólogo: as relações raciais entre brancos e negros. Na África, jovens europeus e africanos deveriam andar juntos? Na escola, os alunos africanos eram melhores que os franceses? Por isso mesmo, pequena, informal, a referência ao Apartheid na África do Sul do final da década de 1950 vai ao centro da questão: um problema dos sul-africanos? Ou de todos? Que diziam os ingleses? Que diziam os franceses? Que faziam os franceses então na Argélia? Que deveriam dizer e fazer eles, ali, na Costa do Marfim?

No trajeto do vendedor de galinhas de Cocorico! Monsieur Poulet uma radicalização do modo de trabalho que organiza A pirâmide humana – e logo adiante organizou Crônica de um verão. O filme de 1975 não repete o modelo de construção de 1959-1960, mas parte dele para se inventar livremente (como  sugere Éluard? Como escravo de seus olhos irreais e puros?): “Sou o fotógrafo de meus filmes. É absolutamente importante poder observar diretamente pelo visor e escolher a composição da imagem. Com frequência trabalho com uma lente grande-angular para poder filmar no meio da situação. E, ainda, enquanto filmo sou o primeiro espectador do filme; vejo o filme pelo visor da câmera, porque de fato o que filmo, o que acabei de filmar, é que me conduz a continuar filmando”.

A princípio, “um documentário sobre o comércio de galinhas. A ideia partiu de Lam, que na época trabalhava vendendo frangos”. Mas antes mesmo de começar a filmar, a decisão de “fazer um filme diferente, de ficção, e com um novo tipo de realizador, multinacional, de três cabeças: Damoure Zika, Lam Ibrahim Dia e eu. Um filme produzido e dirigido por DaLaRou. Três cabeças que se conheciam há longo tempo”. O filme de três cabeças, diz Rouch, “cresceu sem nenhum juízo. Não conhecíamos a história que íamos contar antes de começar a filmá-la. Não queríamos conhecer”. As peripécias da viagem, “os constantes incidentes com o carro, que enguiçava a toda a hora, conduziram nossa improvisação”, prossegue. O carro “não tinha freios, nem faróis, nem os papéis em ordem. As seguidas panes modificavam o que esboçávamos planejar. Não por acaso chamávamos o carro de Paciência: ele nos obrigava a parar quando queríamos ir em frente”.

O carro passou a ser a estrela do filme e, quando preciso, era carregado no colo. “As três travessias do rio: não se trata de truque de ficção, mas de fatos; desmontávamos e remontávamos o carro para poder cruzar o rio, assim como se vê. Na história do pneu, sim existe um truque. Levei comigo o sujeito que melhor sabe encher pneus. E por acaso estava lá um dos melhores marcadores de ritmo. E então se fez uma espécie de show improvisado. Os dois não tinham estado juntos antes. Mas habitualmente o trabalho de encher o pneu de um carro é acompanhado por uma música de percussão obtida por batidas no aro do pneu dentro do ritmo em que a bomba é pressionada. Quando começaram a encher o pneu lembrei-me deste costume e comecei a filmar. O truque: só depois fiz a imagem do carro enguiçado”.

Por tudo isso, Rouch pode dizer com um amplo sorriso ao apresentar o filme no Festival de Cannes: “Cocorico! Monsieur Poulet foi a filmagem mais divertida de minha vida”. Por tudo isso e também pelo que aprendeu com A pirâmide humana – o filme e a poesia de Éluard -, deixar-se escravizar por seus olhos irreais: “Fazer cinema desse modo é algo comparável a uma espécie de transe cinematográfico em que o homem com a câmera deixa de ser ele mesmo para se transformar num olho e num ouvido mecânicos que se deixam conduzir pela intuição, pelos acontecimentos diante dele”.

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