De quando em quando surge no cinema brasileiro uma comédia que escapa da vala comum das franquias mais previsíveis e vulgares da Globo Filmes (as chamadas “globochanchadas”) e esboça uma revitalização ou ao menos um arejamento do gênero. A aposta do momento é Divórcio.
O filme de Pedro Amorim não inventa a roda, mas tem o mérito de reciclar eficazmente uma longa tradição – a da comédia de casais que se digladiam – ao inseri-la num contexto social muito específico e contemporâneo: a modernização conservadora do interior de São Paulo, com a pujança de sua agroindústria, o novo-riquismo de sua elite, a onipresença de uma pegajosa música sertaneja.
Oligarquia e agronegócio
O casal em questão é formado por Noeli (Camila Morgado), filha de um velho latifundiário, representante da oligarquia patriarcal tradicional, e pelo pobretão Júlio (Murilo Benício), que a resgata espetacularmente, em pleno altar, de um casamento arranjado. A essa ruidosa e acelerada sequência inicial de ação segue-se uma montagem de cenas breves que mostram de modo eficiente a evolução do novo casal: as filhas, a constituição de uma bem-sucedida fábrica de molho de tomate, o progresso financeiro, o machismo dele, a futilidade dela, o descompasso crescente, a fermentação do ressentimento.
A partir daí, temos duas linhas expositivas que se sobrepõem e, eventualmente, se entrelaçam: o acirramento da crise do casal e a sátira social, em que os signos da modernidade e do consumo não escondem a persistência de valores provincianos, resumida na frase recorrente “Viver no interior é um cu”.
A primeira dessas duas linhas, a da beligerância crescentemente destrutiva do casal, é a mais bem desenvolvida, graças em boa parte ao talento cômico dos protagonistas. Como bem observou o crítico Daniel Schenker, chega a lembrar A guerra dos Roses (1989), de Danny DeVito, embora sem a mesma radicalidade subversiva, isto é, sem levar o conflito às últimas consequências.
Sátira moderada
A mesma índole moderadora freia também a vertente de crítica social, fazendo com que o retrato da paisagem física e humana de Ribeirão Preto e região oscile entre a sátira mordaz de um mundo de muito dinheiro e pouco refinamento e o fascínio diante de sua exuberância material. A sofisticada fotografia, puxando para uma luz um tanto asséptica e publicitária, acentua esse fascínio. Uma ambiguidade análoga se reflete no tratamento levemente irônico, mas essencialmente respeitoso, dispensado ao universo da música sertaneja. Talvez seja um limite imposto pelo horizonte do público-alvo do filme. Não convinha ferir suscetibilidades.
Nada disso obscurece a virtude principal de Divórcio: a aposta num humor físico, visual, que investe mais na montagem, no ritmo e na performance dos atores (tanto dos protagonistas como dos ótimos coadjuvantes) do que propriamente em piadas verbais, embora algumas destas também sejam bastante boas.
Mais que tudo, na comparação com o grosso da produção cômica recente, há uma recusa da estridência e da histeria como recursos para provocar o riso. Com um movimento sutil do olhar ou com o timing exato de uma pausa na fala, Camila Morgado faz mais graça do que mil gritos de Ingrid Guimarães. Tomara que produtores, diretores, roteiristas – e espectadores – estejam atentos a isso.
Irenes e Deserto
Estão em cartaz dois outros filmes brasileiros que merecem muito ser vistos. As duas Irenes, de Fabio Meira, é um delicado “romance de formação” de duas meninas de 13 anos de uma cidade do interior, que compartilham o mesmo nome e o mesmo pai, em casas diferentes, em vidas paralelas. Só vendo para entender.
Deserto, primeiro longa-metragem dirigido pelo ator Guilherme Weber, é uma engenhosa fábula em que um grupo de atores saltimbancos chega a um vilarejo abandonado do sertão e institui por sorteio o papel social que cada um desempenhará na constituição de uma nova sociedade. Lindamente filmado e encenado, combina crítica corrosiva aos estereótipos e relações de poder com uma celebração da arte como recriação do mundo.