A segunda vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil tem de novo uma dupla marca, como na primeira vez, há dois anos. Sua chegada é motivo para o lançamento de dois de seus livros: Caminhos Divergentes – judaicidade e crítica ao sionismo (Boitempo Editorial), com palestra na próxima segunda-feira, 6, na UNESP; e A vida psíquica do poder – teorias da sujeição (Autêntica). São títulos de momentos distintos da sua obra: o primeiro livro data de 2012 nos EUA e discute questões ligadas à violência de Estado; o segundo tem publicação original em 1997 e é parte dos desdobramentos teóricos exigidos pelas questões abertas desde o final dos anos 1980, quando da publicação de Problemas de Gênero (1989 nos EUA, 2003 no Brasil).
Engana-se, no entanto, quem pretender estabelecer uma separação teórica a partir da distância temporal existente entre o livro de 1997 e o de 2012. Em A vida psíquica do poder, Butler está animada pela leitura da filosofia de Michel Foucault, no qual o tema do poder é central na formação dos sujeitos, na subjetividade, no assujeitamento – termo estabelecido como tradução brasileira para assujettissement. Butler parte deste aparente paradoxo do termo sujeito, que ao mesmo tempo quer dizer se constituir como “eu” e estar submetido a uma estrutura de poder, para revisitar diferentes pensadores – como Hegel, Althusser, Nietzsche e Freud –, e dar continuidade a um tema inaugural da sua obra, o estatuto do sujeito na filosofia contemporânea.
A partir de 2001, para ser mais exata, a partir do 11 de setembro de 2001, Butler coloca em debate o poder do Estado sobre os sujeitos. Emerge então o tema de Caminhos divergentes e do seminário que o acompanha, Os fins da democracia, no qual Butler estará debatendo acompanhada de sua companheira, Wendy Brown, ela também uma pensadora crítica do modelo democrático norte-americano, seja pelo fracasso do multiculturalismo e de suas políticas de consenso e tolerância, seja por sua expansão neocolonial em uma política internacional pautada por violência, guerras e invasões.
Caminhos divergentes tem assim grande contribuição a dar no debate sobre o que pode um Estado. Inspirada nas suas críticas à violência do Estado de Israel, já criticadas como anti-semitas, Butler encara o desafio de recolher fontes judaicas para criticar a política israelense e afirmar que a crítica ao sionismo não equivale a antisemitismo. São mobilizados pensadores como Hannah Arendt, Primo Levi e Walter Benjamin. Dele, Butler recupera o importante Por uma crítica da violência, de 1921, no qual o alemão percebe como a violência de Estado se sustenta no tripé militarismo, polícia e pena de morte. É ali também que Benjamin pensa a violência constitutiva do ordenamento jurídico dos estados modernos.
É verdade que, como Butler observa, a crítica de Benjamin foi sendo desacreditada ao longo do século XX por uma corrente de pensadores que pretendeu afirmar o direito como o mecanismo pelo qual se poderia enfrentar a ascensão do fascismo. Mas é verdade também que, para outros autores, entre os quais eu localizaria Giorgio Agamben, o direito não fornece instrumentos suficientes para combater o estado de exceção que participa, como paradigma de governo, das democracias modernas.
É aqui talvez que os caminhos divergentes de Butler mais se aproximem dos descaminhos tomados pela política brasileira contemporânea e tornem sua presença no Brasil tão mais importante. Não porque nos seja tão útil discutir a política externa norte-americana, embora esta sem dúvida nos afete cada vez mais na sua expansão neocolonial. Escárnio, no entanto, parece o ponto que mais nos toca no diagnóstico de Butler: “o escárnio tanto do direito constitucional quanto do internacional que caracteriza a política externa dos Estados Unidos em suas práticas de guerra, tortura e detenção ilegal”. Interessa ao momento brasileiro sobretudo pela primeira parte da frase – o escárnio ao direito constitucional –, que tem significado o desprezo das liberdades individuais e de todo aparato político-democrático que o Brasil parecia ter construído nas última décadas. É deste diagnóstico que ela mesma tem sido alvo, nos inúmeros protestos contra a sua vinda ao país, que ignoram a liberdade como direito fundamental.
Por fim, da primeira vez em que esteve no Brasil, em 2015, de Butler foram lançados Quadros de guerra (Civilização Brasileira) e Relatar a si mesmo (Autêntica), o primeiro editado nos EUA em 2009 e o segundo em 2005. Suas palestras em Salvador, na UFBA, e em São Paulo, no Sesc Mariana em grande medida surpreenderam plateias que ainda esperavam a autora de Problemas de gênero, mas encontraram uma filósofa propondo paradoxos que ainda desafiam tanto os teóricos quanto os militantes: como continuar mobilizando vulnerabilidades a fim de pedir proteção estatal ao mesmo Estado que é violento justamente com os sujeitos mais vulneráveis? Para boa parte da militância que esperava a mera adesão de uma filósofa queer, foi um susto ouvir Repensando vulnerabilidade e resistência.
Agora, grupos radicais de direita insistem em encontrar em Butler aquilo que ela não é: nem a primeira e principal formuladora da teoria queer nem a inventora do gênero como construção social. Na ambigüidade do título do seminário (Os fins da democracia) está uma resposta possível aos seus ruidosos e mal informados opositores: estamos diante dos fins da democracia, seja porque é preciso repensar seus objetivos e métodos políticos, seja porque é urgente encontrar formas de substituir a democracia representativa como modelo de governo que fracassou, tanto a ponto de destruir o valor que lhe seria mais caro, a liberdade.