Era mais uma dessas cerimônias sem graça de inauguração de uma estrela na calçada da Fama, em Hollywood, um ano e pouco atrás. A diferença era o homenageado, John Goodman, mas, principalmente, quem iria falar. Jeff Bridges subiu ao púlpito com uma maleta, parou e tirou algo de dentro que só Goodman viu primeiro.
– Dude! – ele gritou e então a pequena multidão viu Bridges vestir o casaco inconfundível, se transformando em Jeffrey Lebowski, seu personagem em O grande Lebowski.
O que aconteceu depois mais vale a pena ser visto do que narrado (dica: Bridges declama uma adaptação da cena quase no fim do filme com os dois, ele e Goodman, e as cinzas do amigo morto).
O frenesi na internet não foi pequeno, assim como não foram discretas as homenagens em forma de resenhas e a sessões especiais nos cinemas americanos em março, quando o lançamento do filme completou duas décadas. Esse tipo de reação é uma medida de como Lebowski, como poucos filmes, se entranhou na cultura.
Não é um filme cult que passa à meia-noite com meia dúzia de pessoas presentes. Existe uma religião, o Dudeísmo, com 450 mil pregadores cadastrados nos Estados Unidos, e um festival anual onde fãs vão para ver os atores do filme e beber o drinque white russian. Um documentário, The Achievers, registra a subcultura de seus fãs. Mas se 20 anos depois O grande Lebowski ainda não foi esquecido é por um legado que em certa medida se tornou uma resposta às incertezas de nossa época.
Se quisermos pensar na obra dos irmãos Joel e Ethan Coen como uma coisa só, o tema recorrente é o “peixe fora d’água”. Pode ser algum ingênuo, como o protagonista de Na roda da fortuna, arrogante (Barton Fink), cínico (Ajuste final), charmoso (O amor custa caro), deprimido (O homem que não estava lá), perdido (Um homem sério), um criminoso incompetente (Arizona nunca mais), se achar mais esperto do que realmente é (Onde os fracos não têm vez) ou simplesmente um fracasso completo (Fargo), a mecânica é quase a mesma e cada um deles está perdido nas garras de um esquema qualquer onde cedo ou tarde terá de pagar um alto preço por isso. O grande Lebowski não destoa.
Camus definiu a inteligência na obra de um artista pela capacidade de dizer a mesma coisa seguidas vezes e de maneiras diferentes. Os irmãos Joel e Ethan Coen, em mais de trinta anos de carreira, desde Gosto de sangue (1984) seguiram essa máxima, explorando cavidade após cavidade de uma mesma premissa. Mas mesmo na comparação com o resto de sua obra, Lebowski tem um lugar especial.
A fórmula de um filme noir, com inspiração mais ou menos assumida na obra do escritor Raymond Chandler e na dupla de chapados Cheech & Chong, de filmes como Queimando tudo, é usada para, em 1990, com a primeira Guerra do Golfo prestes a começar, contar as desventuras de Jeffrey Lebowski, que tenta ser compensado porque, ao confundi-lo com um milionário, um bando de niilistas urinou em seu tapete – é o mais perto que dá para chegar de uma trama.
A partir daí, tudo é possível: ele acaba envolvido em um falso sequestro montado pelo milionário, desonesto, se mete com um produtor e gangster pornô, apanha de um xerife racista, toma banho à força com uma doninha, é expulso de um táxi pelo motorista fã da banda The Eagles e também tem carro roubado por um delinquente, filho de uma celebridade aposentada da TV, junto com o dinheiro do resgate. Enquanto isso talvez vá virar pai.
É tentador enquadrar tudo isso na categoria “filme de maconheiro” (ou seja, que faz sentido apenas para pessoas drogadas ou com raízes na cultura das drogas), como Pineapple Express e Queimando tudo. O personagem de Jeff Bridges fuma maconha em várias cenas, mas nada em O grande Lebowski acontece por ele estar chapado. Muito mais importante é ter uma profundidade que não se encontra em muitas comédias.
Há uma cena de musical à altura de Busby Berkeley, coreógrafo lendário da era dos musicais, e outra, de boliche, ao som de Hotel California, dos Eagles (de novo), com os enquadramentos estranhos e detalhes que são a marca registrada dos irmãos Coen. John Goodman como Walter Sobchak e Steve Buscemi (Donny, o único amigo que parece precisar de explicações para entender o que se passa) têm atuações icônicas, assim como John Turturro, o bizarro Jesus, e Julianne Moore (Maude Lebowski, uma artista feminista conceitual que quer ter um filho com The Dude). Já valeriam o filme, mas O grande Lebowski também deu a Jeff Bridges o papel da sua vida.
Dude (ou O Cara, para quem quiser cometer esse crime) é um desgarrado dos anos 60 que, chegando às cinco décadas de vida, não tem um emprego, muito menos uma carreira. Não abandonou seus ideais e, entre uma ocupação e outra, acabou solteiro, levando a vida e jogando boliche com os amigos.
Esse tipo de atitude desconectada de um mundo em que o sucesso e dinheiro são medidas de importância não era popular no fim dos anos 1980, quando George Bush, pai, era o presidente, depois de uma década quase inteira do conservador Ronald Reagan, e tampouco o era no final dos anos 1990, quando Bill Clinton comandava os Estados Unidos e a globalização e o neoliberalismo estavam no auge.
Para falar a verdade, também não parece muito popular hoje em dia, quando a geração baby boomer, da qual Lebowski faz parte, se aposenta legando aos mais jovens um mundo muito mais desigual e incerto. Sem contar que a outra Guerra do Golfo,15 anos atrás, com suas centenas de milhares de mortos, e o Estado Islâmico acabaram com a graça das piadas sobre o Iraque.
Mas também houve a recessão mundial, Trump, o conservador da vez, o subemprego, a ameaça de que os robôs vão tirar os empregos de quase todo mundo e, acossada pelas más notícias, a geração millenial, para quem The Dude oferece uma resposta cômica, mas também libertadora.
A maneira como ele passa ao largo de uma carreira e dos demais valores do consumo pode servir de consolo numa época em que oficiais da polícia e ex-gerentes de alguma coisa estão dirigindo os carros do Uber. O estilo simples de vida o aproxima da mensagem da economia do compartilhamento, do minimalismo, do lowsumerism e outros movimentos, pequenos, mas barulhentos, ligados à rejeição do consumismo.
Se há uma moral em O grande Lebowski, é, em 1998 como agora, o choque dos mundos coabitando dentro de Los Angeles, juntando o ex-hippie, o paranóico do Vietnã, um surfista veterano, um pedófilo de calça colante e um milionário conservador e picareta. Mas sempre houve um pequeno grupo que não se rendeu. Críticos renegaram o filme na época do lançamento. Um dos poucos a ficar ao lado dos irmãos Coen foi o falecido Roger Ebert.
Hoje o cenário mudou. A maioria reconheceu que, assistindo o filme outras vezes, suas qualidades ficaram mais evidentes. Pode ser que só estejam querendo ficar bem com o modo como o filme é visto, mas também pode ser que pensem como Alex Ross, autor do livro sobre música Escuta só. Em 1998, sua resenha na Slate atacou a incapacidade dos irmãos Coen de sustentar O grande Lebowski por duas horas. Hoje brincou: “Eu morria de medo que alguém escavasse até encontrar isso”.
Também a eles, repetindo a famosa frase do final do filme,The Dude sobreviveu.