“Sele” na linha do trem

“Sele” na linha do trem

Que protesto maior do que ir aonde dizem que você não pode ir e ainda deixar sua assinatura como quem diz “Eu estive aqui, porra!”

As pichações põem à prova a nossa miopia urbana. Onde vemos borrões, jovens veem marcas nítidas da passagem de pessoas, identidades e bairros. Os rabiscos que cobrem a cidade são nomes com rosto e reputação. São uma linguagem com sensibilidade e valores próprios que delimitam espaços e marcam fronteiras entre o mundo do nós e o dos outros. São grafismos que trazem histórias de vidas, memórias, projetos, perdas, sensações intensas de prazer, medo, aventura, revolta, realização, risco e morte.

Nossa epígrafe e todas as demais citações deste texto são fruto de dezenas de entrevistas feitas por Vinícius Moraes com pichadores no Rio de Janeiro. Com eles, aprendemos que uma pichação não é para ser lida, mas para ser vista “como se fosse uma fotografia do cara, uma marca dele!”. O nome não se escreve; o nome se taca, se espalha, numa missão pela cidade, de pico em pico, onde se pega pedra, muro, marquise e chapisco, para um dia, quem sabe, virar lenda. Precisa ser uma tag fácil de mandar, com quatro letrinhas:

Tranquilão, mandou, saiu, um, dois, nem me viu na neblina. …pra mandar e sair batido. Numa dessas tu roda!

A falta de legibilidade é proposital, como nas mensagens criptografadas. No Rio, prevalecem as tags de letras transpassadas, fora de ordem ou até invertidas, às vezes com elementos gráficos como estrelas, pontos e traços. A inversão é a chave do idioma xarpipixar na linguagem TTK. É também uma forma de dificultar o entendimento para quem não domina o código. Cada pichador tem (ou gostaria de ter) uma marca singular e reconhecível para seus pares, que se destaque visualmente e que permaneça pelo maior tempo possível  em superfícies de difícil acesso da cidade.

A pichação faz uma leitura do espaço urbano onde os principais critérios em jogo são apelo visual, durabilidade, dificuldade de acesso e distribuição por locais de visibilidade urbana. Alcançar esses quatro parâmetros atribui enorme valor a uma tag/nome, demonstrando criatividade, esperteza e coragem por parte do pichador portador da assinatura.

 

“Sele” “VB Vida Bandida”, “Latrees”, “Sunk”, “VR Vicio Rebelde”, “Familia dos @cessos”

 

Na foto, vemos uma carro degradado, num local de grande circulação de jovens da Zona Norte. Onde a cidade vê entulho, pichadores enxergam uma superfície de alta durabilidade e visibilidade. Pichar em espaços “eternos” é o ápice: paredes de pastilha, pedra, mármore e outras superfícies onde é quase impossível remover a tinta.

Não adianta pixar onde vão apagar no outro dia. Não adianta pichar em rua que ninguém vai ver, não adianta pichar em lugar escondido.

A dificuldade de acesso atribui renome aos que vencem o desafio. A altura e o risco (de cair ou de ser pego por agentes repressores) são fatores que geram medo (onda), mas também muito prestígio ao pichador.  A mistura de prazer e medo torna-se um vício, dizem os jovens: “é um medo gostoso, é como se fosse uma prova de que você superou um obstáculo naquele momento.” A repetição é outro fator importantíssimo na busca pelo renome. Mandar a tag muitas vezes e em muitos locais diferentes é uma forma eficaz de fazer com que uma assinatura se destaque em meio a dezenas de outras. Assim vão se criando pichadores de grande fama, relíquias e lendas admiradas.

Ter uma assinatura com alto grau de prestígio no mundo da pichação é uma satisfação em si mesma:

É muito bom, cara! Muito sentimento, muita adrenalina. Depois de tudo, ainda tem a fama. Sei lá, me completa!

É um prazer que só faz sentido se pensarmos no indivíduo inserido numa ação coletiva. A tensão e o deslizamento entre o eu e o grupo está no cerne da prática. Os pichadores têm um nome singular, mas operam em missões com sua sigla, bonde, crew – um coletivo a que se filiam e que, por sua vez, tem nome e tag próprios, como Rataria! (R!), Five Star (5*), Vício Maldito (VM), Vida Bandida (VB), VR (Vício Rebelde).

O pichador vive no anonimato perante os pais, a família e demais pessoas que não frequentam o seu mundo. Diante de potenciais repressores, precisam disfarçar os sinais que revelam sua identidade: roupas sujas de tinta, latas de spray na mochila – até andar “olhando muito para o alto” pode te fazer rodar (ser punido, preso ou morto). Em locais altos, é bom estar com aliados, seja para pra ajudar a alcançar alturas maiores, seja para ter alguém escoltando enquanto você picha.

“Vok”, xarpi de escada na sequência com “Agua” e “Sele”

Sair para espancar um nome amplia a circulação dos jovens. É uma forma de romper com o isolamento, transpondo barreiras territoriais e simbólicas impostas aos moradores de áreas não centrais da cidade.  Essa circulação também se dá pelos meios de comunicação. Pichar edificações do patrimônio público vira notícia e traz fama ao transgressor. É um tipo de subversão que remete às origens históricas dessa forma de protesto:

Todos os patrimônios estão na rua, a rua é nossa, nós somos a rua, então fica tudo no zero a zero! (…) Foda-se. Caguei, cara. É isso mesmo, a gente invade patrimônio pra pixar muro mesmo e foda-se.

A busca pela notoriedade leva os jovens a se arriscar no alto de prédios, em edificações de valor simbólico (igrejas, por exemplo) ou a buscar situações que serão fotografadas (acidentes, locais com pessoas famosas). Como afirmou um interlocutor da nossa pesquisa:

Estou interessado em mídia. Eu quero saber de divulgação! (…) Eu nunca respeitei nada; eu pixo escola, hospital, igreja. Quero mídia!

A pichação é um universo de linguagem visual, simbólica e sonora. Seus códigos fazem sentido como perspectivas não hegemônicas de cidade. O pixo anda na margem, escondido tanto da família quanto dos agentes de repressão, que perseguem, prendem, batem e, não raro, matam os jovens. Como nos disse um deles:

Muita gente atira primeiro e pergunta depois! Tu vai rodar pros cana, pros vigia ou pro próprio morador.

O risco de vida é constante:

Pixar na linha do trem é foda! Esses malucos te enfiam a porrada até a morte!

Num universo social tão profundamente desigual quanto o nosso, está mais do que na hora de compreendermos os sentidos dessa prática que, apesar (e por causa) da violenta repressão, é praticada com grande vitalidade, constituindo-se como um meio de expressão gráfica, artística e social de habitantes da cidade. A irreverência e a transgressão que acompanham essa linguagem são também uma forma de forçar o olhar, de tornar visível aqueles que são socialmente invisíveis, como nos explicam os próprios jovens: “você tem que fazer com que olhem pra você”, pois “quem não é visto não é lembrado”.

, , , , , , , , , , ,