O banquete, de Daniela Thomas, não é um filme agradável. Nem poderia. O mal-estar é seu tema, seu método e sua substância. Concentrado num jantar que reúne personagens da política, do teatro e da mídia, pode ser lido como um retrato corrosivo da sociedade patriarcal brasileira num momento de crise (os anos Collor).
O pretexto para o evento é a comemoração dos dez anos de casamento entre o editor e dono de jornal Mauro (Rodrigo Bolzan) e a atriz Bia (Mariana Lima). Mas o clima será pouco festivo, apesar da embriaguez e da hilaridade geral, feita de risos mais sarcásticos e nervosos do que propriamente alegres. Aos poucos, por retalhos de conversas e telefonemas truncados, ficamos sabendo que Mauro publicou em seu jornal uma veemente carta aberta ao presidente Collor e está na iminência de ser preso.
À tensão em torno da ameaça de prisão somam-se as farpas trocadas sobretudo entre as mulheres presentes, expondo ressentimentos, ódios e traições. Na figura de Mauro se condensa uma carga pesada de sexo e poder, que parece ter semeado destruição à sua volta. Mas é um poder agora apequenado, constrangido, um sexo emasculado. O jantar é, de certa forma, o espetáculo da sua ruína e da sua humilhação.
Sexo e poder
Sexo e poder estão presentes em todos os gestos, todos os diálogos, dentro e fora do quadro. As altas ideias formuladas em falas sagazes – sobre política, filosofia, história, teatro e sexo propriamente dito – são contrabalançadas, ou antes trazidas ao rés do chão, pelas piadas e insinuações mais chulas, e todas as máscaras caem. A única personagem que entra em cena (literalmente) com uma máscara, a jovem stripper sem nome (Bruna Linzmeyer), é a única que não tem nada a esconder e, com sua cínica candura, ajuda a desnudar (metaforicamente) todos os outros.
A crise é política, psicológica e moral. Se a referência básica é o Banquete de Platão, onde se discutiam o amor e a amizade, há aqui também um misto de última ceia cristã (aludida num dos primeiros diálogos) com o orgíaco e decadente banquete de Trimalquião, do Satyricon de Petrônio. No cinema, podemos evocar o hedonismo autodestrutivo de A comilança, de Marco Ferreri, que Buñuel definiu como “grande tragédia da carne”.
Como em todos esses casos, temos aqui uma concentração dramática extrema, respeitadora da unidade de tempo e espaço. Simula-se na duração do filme a duração real do jantar. Nisso O banquete se aproxima também do recente O animal cordial, de Gabriela Almeida.
Na orquestração engenhosa das falas, gestos e olhares, que não deixa a tensão afrouxar nem por um momento, talvez o que tenha faltado sejam uns poucos planos de conjunto que pudessem nos dar uma ideia mais clara da posição dos personagens em relação uns aos outros. Ou quem sabe essa relativa confusão quanto a quem está olhando para quem seja deliberada, para aumentar a sensação de entropia e embriaguez.
Nesse caso, a escolha da ambientação na era Collor (início dos anos 1990) não terá sido aleatória. Além de marcar um momento de “crepúsculo do macho”, em que as mulheres começam, ainda de modo desesperado e fratricida, a contestar e colocar em xeque a dominação masculina, aquela foi, no plano simbólico, uma época de aceleração e intensidade: as corridas de jet-ski, a ilusão de saltar de imediato para o Primeiro Mundo, a percepção de grandes mudanças em curso, enfim, uma euforia análoga à de uma overdose de cocaína.
Do teatro ao cinema
Embora os personagens – o dono de jornal, a atriz, um advogado, uma jornalista cultural, um colunista social etc. – sejam fictícios, é evidente que Mauro é inspirado, predominantemente, no então jovem diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho. Não só pela composição do personagem (os óculos, o figurino, o laconismo tenso, a ironia ferina), mas pela circunstância histórica de que Otavio publicou de fato em seu jornal uma carta aberta a Fernando Collor. A referência ficou ainda mais clara quando, dias depois da morte prematura do jornalista, a diretora Daniela Thomas decidiu retirar o filme da competição do festival de Gramado, para evitar um possível mal-estar (outra vez a palavra) num momento de luto.
Mas não se trata, propriamente, de um roman à clef. São criaturas imaginárias, ainda que possam estar muito próximas das que vemos à nossa volta. Procurar correspondências diretas seria apequenar o alcance (auto)crítico da obra.
Concebido originalmente como peça teatral, O banquete consegue a quase sempre manter as potências do palco – a preponderância dos atores (excelentes), a força dos diálogos, o peso dos silêncios, a compressão espaço-temporal – e ao mesmo tempo servir-se dos recursos especificamente cinematográficos: os closes reveladores, os movimentos sutis de câmera que fazem deslizar os pontos de vista, o uso dramático do foco. Já a primeira e eloquente imagem – um arranjo floral em que uma planta carnívora de repente abocanha uma incauta mosca – se anuncia como puro cinema e ao mesmo tempo como pista para o sentido do que virá a seguir. Entre taças de Brunello di Montalcino e doses de uísque doze anos, entredevoram-se os convivas daquilo que a diretora definiu como “intragável banquete canibal”. A ressaca, ao que parece, dura até hoje.