A crise das jornalistas

Colunistas

22.05.14

Até a semana passada, as redações de dois grandes jornais do mundo – The New York Times e Le Monde – eram pela primeira vez comandadas por mulheres. A ascensão parecia ser a natural chegada aos cargos de chefia em uma profissão há décadas marcada pela majoritária presença feminina (no Brasil, as mulheres são 64% dos profissionais em atividade). Jill Abramson e Natalie Nougayrède, respectivamente, perderam seus inéditos postos de diretoras de redação por alegações muito semelhantes: estilo de gestão. Sobre a americana, o noticiário é farto em adjetivos negativos. Falta de habilidade, arbitrariedade, comunicação inadequada e destrato dos colegas. Ficou três anos no cargo. Da francesa não se diz nada melhor. Dura, autoritária, gestora ineficiente, caiu menos de um ano depois de eleita e após a redação ter mergulhado em grave crise. Na carta de demissão, Natalie alega que a vontade de alguns editores de “reduzir drasticamente as prerrogativas do diretor do jornal é incompatível com sua missão”.

A web está coalhada de textos discutindo a atitude sexista na demissão das duas. Apesar dos indicadores de maioria, as redações, como todas as grandes empresas, são ambientes marcados pela hierarquia sexual do trabalho. Mulheres ganham menos, têm menos prestígio profissional, menor perspectiva de carreira e são sobrecarregadas com tarefas subalternas. Entre dois gerentes, um homem e uma mulher, muito provavelmente caberá a ela atividades ligadas à organização, cuidado e atenção aos detalhes. Dos homens, espera-se a discussão dos grandes temas, e de mulheres, subserviência. Quando autoritários, homens são lideranças ruins; quando autoritárias, mulheres são pessoas difíceis, dotadas de muita personalidade. Nos dois casos, excesso de autonomia e temperamento difícil foram fatores alegados para a dispensa das profissionais.

Há, no entanto, outros elementos em jogo. No NYTimes, uma não totalmente esclarecida diferença salarial entre Jill e seu antecessor, uma crise de performance nas vendas do jornal, e uma resistência da redação a inovações na versão on-line; no Le Monde, uma repetição dos dois últimos itens, indicadores de crise no jornalismo para além das turbulências internas nas redações desses dois jornais. Ao serem “duras”, “rígidas” e “autoritárias”, repetiram paradigmas ditos masculinos, culturalmente inadmissíveis em mulheres e em desuso no manual de modernização de gestão de empresas. Enfrentaram também uma antiga sobreposição entre a mensageira e a mensagem: a indústria do jornalismo está em crise e ninguém sabe como fazer para debelá-la.

Do pacote da queda das duas, chama a atenção o comentário do economista Jeffrey Dorfman, colunista da Forbes. Segundo ele, executivos, homens ou mulheres, precisam se ajustar a novos padrões e estilos de liderança aceitáveis, e a queda de Jill se explicaria por sua tentativa inadequada de imitar antigos modelos masculinos de chefia. Os argumentos de Dorfman reiteram um antigo debate sobre o lugar das mulheres no mercado de trabalho. Devem agir “como se fossem” homens, adotando os paradigmas tradicionalmente atribuídos aos velhos gestores e reivindicando a igualdade salarial com a qual Jill alega não ter sido contemplada? Ou devem se valer do poder para adotar novas formas de comando, como propõe o economista, ligadas a atributos tradicionalmente femininos, como compreensão, envolvimento, delicadeza?

Uma das perguntas que a demissão das duas suscita é se, afinal, existem condições sociais e culturais para que uma mulher exerça um cargo de poder (questão, aliás, que não é estranha ao debate eleitoral brasileiro). Importante observar no dilema dois tipos de raciocínio determinista: homens seriam naturalmente autoritários e talhados para cargos de comando; mulheres seriam naturalmente fracas e, portanto, só poderiam exercer o poder “como se fossem homens”. É um problema que perpassa as disputas no mercado de trabalho nos EUA desde os anos 1970, quando a então gigante Sears foi acusada de discriminação contra mulheres por não promovê-las a cargos de chefia, e ganhou a briga na Justiça sob alegação de que mulheres não estavam naturalmente interessadas em serem promovidas, dadas as exigências de maior dedicação e responsabilidade dos postos de gerência.

No novo espírito do capitalismo, para usar a expressão do sociólogo francês Luc Boltanski, caracterizado pela passagem da produção de bens para os serviços, cria-se um novo vocabulário nos manuais de gestão das empresas, nos quais passam a vigorar palavras como “envolvimento”, “times de trabalho”, “parcerias”. Tornam-se valores fundamentais no mundo do trabalho atributos até então considerados pessoais, como “espontaneidade, polivalência, comunicabilidade, criatividade, intuição visionária, sensibilidade, aceitação de múltiplas experiências”. Sai de cena o modelo hierárquico, substituído por outro clichê dos manuais de reengenharia, a “gestão em rede”.

O “salário ambiente” vem acompanhado de outros quesitos menos agradáveis. Aumento da jornada de trabalho (para os jornalistas exigirá a redução do número de horas de sono, porque muitas dos expedientes já são de 12 a 14 horas); flexibilização da remuneração, com parcela significativa variável conforme os resultados; e disponibilidade diante de mudanças. No Le Monde, por exemplo, foram extintas as áreas de especialização dos jornalistas, acirrando a competição interna entre os profissionais, característica comum em grandes redações. À exigência de adaptação aos novos tempos correspondeu um levante interno dos editores – a maioria, homens -, culminando na queda de Natalie.

Por fim, sobra uma dúvida: haveria uma coincidência em sermos nós, mulheres, as responsáveis por implantar nos ambientes de trabalho esses valores do novo espírito do capitalismo? Não é apenas uma questão retórica, e a minha resposta é controversa: marcado pela precarização dos vínculos do trabalho, da remuneração e dos benefícios sociais, no novo espírito do capitalismo há mais espaço para as mulheres por elas serem aquelas que ganham menos, trabalham mais e tiveram que se adaptar a vínculos flexíveis para dar conta da dupla jornada empresa/maternidade. Sigo o argumento da socióloga Helena Hirata, pesquisadora, no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), do mercado de trabalho na França, onde atua desde os anos 1970: “O emprego feminino é, em todos os países, mais precário e instável que o emprego masculino. Esses empregos femininos precários podem prefigurar o padrão de assalariamento do futuro para ambos os sexos”.

A controvérsia está no fato de que, vista por esse ângulo, a emergência de mulheres a cargos de poder seria encarada não como uma necessária conquista das lutas feministas, da qualificação das mulheres ou mesmo de seus méritos pessoais, mas como mero instrumento do capitalismo para baratear a mão de obra e enfraquecer as relações de trabalho. Seguindo o clássico conceito marxista de exército industrial de reserva, a entrada das mulheres no mercado de trabalho teria ajudado na expansão capitalista, o que não quer dizer que nós deveríamos ter ficado em casa. Quer dizer que precisamos, homens e mulheres, pensar no que pode significar para o mercado de trabalho a previsão da consultoria Strategy&: em 2040, um terço das empresas será liderado por mulheres.

Carla Rodrigues é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e uma das coordenadora do Khôra – laboratório de filosofias da alteridade.

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