Houve um tempo em que receber dez indicações ao Oscar era coisa para épicos como O poderoso chefão ou O último imperador. Hoje isso acontece com um filme de entretenimento ligeiro como Trapaça.
Nada contra o entretenimento ligeiro, muito menos contra o subgênero específico em que se enquadra o trabalho de David O. Russell, a farsa de vigarice ou malandragem, que produziu exemplares deliciosos, de Golpe de mestre (George Roy Hill) a Os safados (Frank Oz), passando pelo brasileiro Vai trabalhar, vagabundo (Hugo Carvana), pelo argentino Nove rainhas (Fabián Bielinsky) e pelos primeiros filmes de David Mamet.
De todo modo, a chuva de indicações para Trapaça talvez diga muito sobre a pobreza da produção e dos critérios da Hollywood atual.
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Mas vamos ao filme. Há algo de relaxado, quase mambembe, na sua construção, e de trôpego no seu andamento narrativo, o que condiz com o caráter de seus protagonistas – o trambiqueiro profissional Irving Rosenfeld (Christian Bale), sua parceira e amante Sydney (Amy Adams) e o agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper) que os desmascara e os coopta para trabalhar para a polícia.
A história se passa em Nova York e em Nova Jersey nos anos 1970, o que cria uma atmosfera semelhante à dos filmes de Martin Scorsese ambientados no submundo dos pequenos mafiosos – além de propiciar o recurso a uma poderosa e nostálgica trilha sonora que vai de Elton John a David Bowie, de Santana a Paul McCartney, temperados pelo jazz de Duke Ellington, Ella Fitzgerald e Thelonious Monk.
Anti-herói sedutor
A evocação do cinema de Scorsese é reforçada pela atuação hiper-realista de Christian Bale, ator que se transforma fisicamente de um papel a outro como fazia o jovem Robert De Niro. Claro que as semelhanças param por aí. Trapaça carece do vigor, do rigor e da ambição dos melhores trabalhos de Scorsese.
Mas, voltando a Bale, a caracterização que ele faz do desglamorizado e ainda assim sedutor trambiqueiro Rosenfeld – que já entra em cena no contrapé, tentando laboriosamente disfarçar a careca – é um dos pontos altos do filme. Mas há outras virtudes dignas de nota.
Uma delas é o fato de embaralhar, sem juízos moralistas, as vigarices dos criminosos comuns e as farsas “oficiais” montadas pelos políticos e pela polícia. (Talvez estejamos testemunhando uma – e das grandes – no Brasil de hoje.) Os pés de chinelo e os “malandros com contrato, com gravata e capital”. O mundo das aparências igualando uns e outros em torno da máxima de Rosenfeld: “As pessoas acreditam no que querem acreditar”.
Outro mérito é ser uma narrativa policial sem perseguição de carros, sem tiros e praticamente sem sangue. No truculento e pouco sutil cinema hollywoodiano atual, isso é no mínimo um alívio.
Trapaça alivia, Ozu salva
Para os cinéfilos mais exigentes, porém, uma alternativa a ser recomendada com entusiasmo é ver ou rever o clássico de Yasujiro Ozu Era uma vez em Tóquio (1953), que estreia hoje (14 de fevereiro) em cópia restaurada no CineSESC, em São Paulo, e também está em cartaz até 28 de fevereiro no IMS-RJ.
Também chamado de Viagem a Tóquio e Contos de Tóquio, é uma obra-prima absoluta, que inspirou recentemente uma espécie de remake, Uma família em Tóquio, de Yôji Yamada. Vale a pena cotejar os dois, mas, se tiver que optar, fique com o original.
Na história do casal de idosos que sai da província para visitar os filhos em Tóquio e descobre que não tem mais lugar na vida atribulada deles na metrópole, Ozu condensa suas principais preocupações sobre a passagem do tempo, a ocidentalização da vida japonesa, o fio tênue das relações afetivas e familiares. Seus planos discretos, serenos e precisos estão entre os mais belos que o cinema já produziu.