“Nikolai Leskov é um personagem de ficção”, um amigo meu certa vez argumentou. “Todo mundo em qualquer curso de Letras precisa ler aquele ensaio do Walter Benjamin sobre o narrador de Leskov. Mas será que esse Leskov existe mesmo? Deve ser invenção. Nunca vi um livro dele nas livrarias.” Com a recente publicação de A fraude e outras histórias e Homens interessantes e outras histórias pela Editora 34, não resta dúvida: Leskov existe.
Focada na publicação de autores do Leste Europeu, a Coleção Leste da Editora 34 tornou-se um marco no mercado editorial brasileiro por publicar, sempre em tradução direta, nomes importantíssimos do cânone como Dostoiévski e Tchekhov, ao lado de autores menos conhecidos, como István Örkény (as duas novelas incluídas em A exposição das rosas inauguraram a coleção). Coordenada inicialmente por Nelson Ascher, hoje em dia a coleção – que conta com 40 títulos – é comandada por Cide Piquet e seus companheiros da editora. Com meros 35 anos, Piquet é um dos principais responsáveis pela publicação de literatura russa no Brasil.
Raskólnikov sai da Bahia
Natural de Salvador, o editor cresceu em um ambiente familiar que não dava muita atenção à cultura livresca. Começou a se interessar por literatura através dos volumes que vinham na assinatura do Círculo do Livro. Enquanto se entretinha com as histórias de Sherlock Holmes, descobriu por acaso A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, e pela primeira vez sentiu que havia algo a mais no universo dos livros. Aos 17 anos, passou no vestibular para Letras, com ênfase em alemão, na USP. Foi a maneira de sair da pacata vida familiar na Bahia, onde trabalhava com o pai desde os 14.
No primeiro sebo que entrou em São Paulo, comprou, meio às cegas, dois livros: O mito de Sísifo, reflexão de Albert Camus sobre o suicídio, e Crime e castigo, de Dostoiévski. Este último lhe consumiu quatro dias intensos de leitura, nos quais não fez nada além de dedicar-se ao drama de Raskólnikov. Piquet apaixonou-se pela vitalidade do romance, e também se identificou com o protagonista, que, como ele, era um jovem estudante, numa cidade grande, longe da família e passando por agruras financeiras.
E foram as agruras financeiras que, de certo modo, o fizeram abandonar a faculdade e entrar no mundo editorial. Aos 19 anos, Piquet teve uma filha, e começou a fazer cada vez menos disciplinas e dedicar-se mais a bicos de revisão e tradução do inglês e do espanhol. A convite do amigo Alexandre Barbosa de Souza, entrou como revisor na Editora 34, onde depois se tornou editor assistente e, por fim, editor em 2006.
Piquet ensaiou um retorno ao mundo acadêmico, voltando a cursar Letras, desta vez com ênfase em Latim, mas abandonou em um ano e meio. Como vários outros editores de sua geração, aprendeu quase tudo que sabe de literatura e línguas sendo autodidata. “Não que eu não sinta falta, às vezes, de ter uma formação acadêmica. Ainda penso ocasionalmente em voltar para poder fazer um mestrado em tradução”, comenta Piquet. E, apesar disso, tem participado frequentemente de simpósios e eventos acadêmicos, já tendo dado aulas na USP como professor conferencista.
Traduções diretas, traduções indiretas
Crime e castigo foi o primeiro grande sucesso da Coleção Leste, e o romance mostrou que há interesse do público brasileiro por novas traduções de Dostoiévski. Atualmente, o livro se encontra na sexta edição, tendo passado por dez reimpressões. Além do clássico, outras 16 obras de Dostoiévski saíram pela 34. Mas foram as edições realizadas a partir de traduções indiretas, do francês ou do inglês, que tanto formaram escritores.
“Um grande autor e um grande livro sobrevive até a uma má tradução, salvo exceções, casos onde a forma tem uma relevância radical. Poesia mal traduzida não serve para nada”, reflete Piquet. “Isso explica o sucesso das traduções do francês. Os franceses maquiaram o estilo de Dostoiévski. A tradução indireta, além do mais, falseia aspectos da forma e do conteúdo da obra. Há ainda o problema de perpetuar erros de primeira tradução e de se distanciar, cada vez mais, das sutilezas do estilo do autor”.
Porém, Piquet concorda que alguns leitores podem sofrer uma decepção com as novas traduções: “Conforme a formação da pessoa, do gosto, alguém que está acostumado com o Dostoiévski do francês pode se frustrar com a tradução direta. É um estilo mais truncado, menos polido. Mas o tradutor tem que traduzir o texto que está lá. O tradutor tem que fazer um trabalho à altura do original, o mais próximo possível. Não é uma questão de certo ou errado, mas de apuro e sensibilidade até para perceber quando uma incorreção pode ser coerente com a natureza da obra. E isso é muito difícil de perceber”.
Mesmo tendo se tornado conhecido por coordenar tantas publicações de autores russos, Cide Piquet não fala a língua. Entrou em um curso de russo ao mesmo tempo em que estudava alemão, mas preferiu conhecer a língua alemã a fundo antes de se aventurar no território de Tolstói. Como editar autores de uma língua na qual não se é versado? “É complicado, mas não é impossível”, diz Piquet. “O que sempre fiz foi o cotejo indireto, a comparação com outras traduções. Não é o ideal. Quando você lê um texto traduzido, o seu primeiro mapa é o texto em si. Ler com atenção, com profundidade, para todas as camadas do texto. Quando se lê com atenção, percebe-se onde pode haver problemas de tradução. O trabalho de edição de texto é uma leitura aprofundada e desconfiada. Se você confiar que a tradução está certa, sem erros, você não vai levantar nenhum problema e não vai mexer no texto. Mexerá só na camada mais superficial. É um trabalho investigativo também, de certa forma”.
Ao trabalhar com Dostoiévski, cotejava com as traduções em inglês, italiano e espanhol. “Você começa a sentir os cacoetes de tradução de cada língua. Franceses têm a tendência a embelezar a tradução dos russos do século XIX. Há casos famosos de editores que alteravam realmente o livro, de como acrescentavam, cortavam etc. Os anglófonos são mais pragmáticos, e frequentemente atropelam as sutilezas ou zonas obscuras do texto. As traduções do espanhol deixavam muito a desejar e parei de usar. Os italianos eram, de longe, os melhores tradutores do russo, coisa que aprendi com o tempo.” Ao se deparar com um problema, dialoga com o tradutor. Antes, a Editora 34 dependia quase exclusivamente de Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman. Hoje, conta com cerca de vinte tradutores bastante ativos e contratou duas pessoas fluentes em russo: Lucas Simone e Cecília Rosas.
As polêmicas notas
É comum, no meio editorial, se deparar com tradutores que abominam o uso de notas de rodapé, e argumentam que a quebra de fluidez na leitura não compensa a explicação. Além do mais, qualquer leitor tem fácil acesso a uma Wikipédia para pesquisar o que não sabe. Muitos livros da Editora 34, como Os irmãos Karamazov, no entanto, estão repletas de notas. “As notas são definidas na conversa tradutor-editor. Se o tradutor é violentamente contra notas, os editores aceitam”, afirma Piquet. “A nota, em algumas situações de tradução de referências culturais, não chega a ser indispensável. Você pode deixar lá, e se o leitor não entender, deixa pra lá. Mas a nota colabora muito. Muitos leitores mandam e-mail elogiando notas. Pessoalmente, não sou contra. Acho que no caso de culturas muito distantes, enriquece a leitura.”
Para questões mais linguísticas, como um provérbio que não faz sentido ser traduzido literalmente, os tradutores buscam um equivalente em português. “O ideal é solucionar no texto”, argumenta o editor. “A nota só deve entrar quando é incontornável. Em última análise, ela é dispensável. Você pode deixar o leitor com aquela dúvida. Mas isso também rompe a fluidez”.
O futuro é contemporâneo
O aumento de interesse pela literatura russa é palpável: não apenas se reflete nas vendas, como a equipe da Editora 34 percebe no contato dos leitores, pelo volume de e-mails. Além disso, aumentou a procura pelo curso de russo nos últimos anos na USP, como relata Bruno Gomide, coordenador do curso de pós-graduação em russo na Universidade, o maior da área na América Latina. A pós tem criado uma nova geração de tradutores de peso – se antes poucos nomes além de Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman se arriscavam na tarefa, hoje há dezenas de jovens que não apenas vertem ao português nomes importantes da literatura, como também refletem sobre o ofício da tradução.
E qual é o futuro, então, da Coleção Leste, agora que está bem estabelecida no mercado editorial? Não ficar apenas no cânone, arriscar-se mais investindo em autores menos conhecidos – e isso inclui sair do século XIX e entrar no mundo contemporâneo. A Nova antologia do conto russo abrange textos de 1792 a 1998, ou seja, inclui autores vivos. A antologia foi organizada por Bruno Gomide e, nas palavras do organizador, reflete um “trabalho coletivo, no qual os tradutores e editores sugeriram textos para integrar a antologia”. Entre as aquisições recentes de direitos da 34, estão obras de Varlam Chalamov e Andrei Platonov.
“Publicar autores menos conhecidos é uma aposta comercial”, comenta Piquet. Com o êxito da coleção, a aposta parece ficar cada vez menos arriscada.