Eu ia escrever sobre o excelente Shame, de Steve McQueen, mas fui ver Pina 3-D e me vieram à mente os versos de Camões: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ que outro valor mais alto se alevanta”. O filme de Wim Wenders é tão arrebatador que, por algum tempo, não sobra espaço para mais nada. Shame fica para outra ocasião.
Chamar Pina de documentário seria reduzir mesquinhamente sua grandeza e seu alcance. É ensaio, poesia, declaração de amor, manifesto estético, político e moral. Uma obra de risco e entrega, como era de risco e entrega a arte de Pina Bausch (1940-2009).
Mesmo para quem, como eu, não entende nada de dança, Wenders consegue mostrar o que há de único na coreógrafa e dançarina alemã: o rigor mesclado com a intuição; a capacidade de extrair de cada bailarino sua linguagem corporal pessoal e intransferível; o talento para criar, mediante o movimento, uma representação precisa da vida tal como ela é e tal como deveria ser.
Se, em última instância, a dança de Pina Bausch consiste em colocar o corpo humano em interação, harmônica ou conflituosa, com as superfícies e objetos do mundo, Wenders, com o auxílio do 3-D, amplia a escala em que esse jogo se dá, lançando os bailarinos de Pina em campo aberto, a contracenar ora com a natureza (bosques, lagos, pedreiras, desertos, cachoeiras), ora com a matéria urbana (ruas, bondes, praças, cães, piscinas, metrô).
Em todas as coreografias encenadas no filme, do Café Müller à Sagração da primavera, parece haver um motivo básico recorrente: o corpo como campo de batalha entre a liberdade e a constrição, seja esta determinada pelo mundo externo ou pelo universo emocional e imaginário do sujeito.
O corpo como instrumento
É comovente ver cada bailarino falar de sua relação com Pina, e mais comovente ainda ver como cada um deles aprendeu com ela a conhecer, afiar e aperfeiçoar à exaustão seu instrumento, o próprio corpo. O controle que eles parecem ter de cada músculo, de cada nervo e de cada fibra de sua anatomia é algo prodigioso.
“Libérrima e exata”, foi como Manuel Bandeira definiu a poesia de Cecília Meireles, e a mesma frase lapidar poderia ser aplicada a Pina Bausch e a cada um de seus dançarinos. Sem qualquer vaidade ou exibicionismo, Wenders põe sua sensibilidade e sua expertise a serviço dessa grande arte.
Em Pina Bausch, como nos mostra o cineasta, ética e estética são sinônimos. Ao falar sobre Salvezza e caduta nell’arte moderno, o crítico italiano Giulio Carlo Argan parecia estar falando dela: “Acima da exatidão técnica, da qual nossos contemporâneos fazem um culto fetichista, existe uma exatidão moral, que eles geralmente ignoram: uma exatidão no realizar não tanto a própria função quanto o próprio dever, porque há um dever, e é o meu dever querer ser alguma coisa diferente daquilo que de fato sou, o meu querer fazer-me com a mesma precisão com que a técnica mecânica faz um objeto”.
Para concluir, nada melhor do que deixar a própria Pina Bausch dizer, com sua dança, o que tem a dizer. Trata-se de um trecho de Café Müller incluído no filme de Wim Wenders.
* Na imagem que ilustra esse post: cena do filme Pina, de Wim Wenders