A literatura e o indizível

Correspondência

14.07.11

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Caro Sérgio,

Da alta literatura ao turfe, passando pelo futebol, sua carta é uma viagem das mais estimulantes e prazerosas. Desses assuntos, vou passar ao largo do turfe, pois sou totalmente ignorante a respeito. Não fui mais do que duas vezes ao Jóquei Clube de São Paulo e só retive o nome de um jóquei célebre, o Barroso, que apareceu até em comercial de Cynar.

Mas devo dizer que o universo dramático em torno das corridas de cavalos me encanta: os aficionados, os desesperados, o charme das tribunas, a tensão das apostas, o imponderável. Isso no cinema funciona muito bem. Assim de cara me ocorrem dois filmes memoráveis: Um dia nas corridas, com os irmãos Marx, e O grande golpe, um dos primeiros filmes do Kubrick. Mas, pensando bem, em ambos o turfe é quase só um pretexto, o hipódromo é pouco mais que o cenário.

Passemos à literatura, que é o núcleo sumarento da sua carta. Quase todos os autores que você citou – Proust, Joyce, Clarice, Guimarães Rosa – me fascinam porque buscam, cada um à sua maneira, exprimir o inexprimível, trabalhar a linguagem como instrumento de busca, de possível revelação (ou “iluminação”, para repetir o termo feliz que você usou), e não de mera ilustração de um real já dado e conhecido.

Joyce e Guimarães Rosa me parecem os casos mais radicais dessa procura. Eles violentam a língua, ou antes as línguas, inventam novos idiomas, com a desmedida ambição de transcender nosso parco entendimento, nossa parca percepção do mundo. Nossa, agora sou eu que estou soando professoral, sem a menor credencial para isso. Vou tentar baixar a bola.

Joyce é um prodígio interessantíssimo. Me veem à mente dois episódios talvez reveladores. Uma vez perguntaram ao Hemingway o que ele achara do Finnegan’s Wake. Ele respondeu: “Meu editor me enviou um exemplar, mas não sei que raio de língua é aquela. Estou esperando ele me mandar um exemplar em inglês”.

A outra historieta envolve Jung. Joyce, como você sabe, tinha uma filha esquizofrênica. Um dia ele pegou uns textos escritos por ela e levou ao Jung, perguntando, cheio de esperança: “Veja, não é parecido com o que eu faço?” Ao que Jung respondeu: “Ali onde você nada, ela se afoga”.

Claro que a primeira anedota fala mais sobre Hemingway, sobre o seu jeito derrisório, “casca grossa”, de encarar a literatura, mas a segunda acho que diz muito sobre Joyce. Ele era um artista altamente cerebral, de uma inteligência implacável, mas é como se soubesse que, para chegar aonde queria, precisava enlouquecer um pouco (ou muito), embebedar-se a ponto de enrolar a língua, produzir uma algaravia pouco compreensível, mas ao mesmo tempo iluminadora.

Este texto já está se alongando perigosamente, mas há ainda uma coisa que sua carta me estimulou a pensar. Se Joyce transita da mitologia irlandesa ao pedreiro bêbado, do Olimpo ao botequim, como você bem disse, numa escala ao mesmo tempo histórica, psicológica e cósmica, me comovem também os escritores que buscam compreender o outro, o “próximo distante”, sobretudo aquele que não tem voz. A frase soou abstrata, vou concretizá-la com exemplos.

Estou pensando em Graciliano Ramos e seu Fabiano, de Vidas secas. Ou em Clarice e sua Macabéa, em Guimarães Rosa e seu Riobaldo, em J. M. Coetzee e seu Michael K. Veja que são autores muito diversos entre si, mas que tentam de um modo quase desesperado uma ponte de linguagem com esse outro afásico, impenetrável. Você de certo modo fez isso num conto como “Um discurso sobre o método”, não é verdade?

Não se trata de “dar voz ao oprimido”, para que expresse suas queixas e aspirações, mas sim de procurar um entendimento, uma linguagem, uma humanidade comum. Pelo menos é assim que eu sinto, e é isso que torna esses escritores tão caros para mim.

Uma última palavra, para não deixar de falar sobre o futebol. Você lembrou do uso do termo “clássico” para os confrontos entre grandes times. Para compensar o tom talvez meio high brow dos parágrafos anteriores, lembro de uma frase lapidar, atribuída pelo folclore futebolístico a vários jogadores: “Clássico é clássico, e vice-versa”.

Mas não era isso que eu queria dizer, e sim que achei muito legal você ter incluído o Ganso ao citar uma galeria atemporal de jogadores de grande categoria. O Ganso é o que podemos chamar, para insistir no termo, de jogador clássico. O passe que ele deu para o gol do Fred, o segundo do Brasil contra o Paraguai, com a bola fazendo uma curva perfeita entre os zagueiros e chegando no tempo e lugar exatos para o artilheiro, foi uma pequena obra de arte. Em momentos como esse, lembro o verso de João Cabral – “dando aos pés astúcias de mão” – e me reconcilio com o futebol.

E ainda não falamos sobre o erotismo.

Grande abraço,

 

Zé Geraldo

 

 

* Na imagem da home que ilustra este post: Luiz Carlos Prestes e o escritor Graciliano Ramos. Foto de José Medeiros/acervo do IMS

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