Velhinho,
Você falou, e eu fiquei lembrando de como foi massa todo o processo de edição da Cachalote. E sei que a gente se conhecia antes e tudo, mas não é coincidência que tenhamos ficado realmente amigos durante o livro. Grande parte disso foi por conta do Rafa, claro. Você sabe tanto quanto eu que a personalidade do Rafa é que ditou a maneira como trabalhamos no roteiro e nas ilustrações. Digo isso no melhor dos sentidos. Algo da presença dele se embrenhou na edição, determinou nossos métodos e nos aproximou. Acho, mas pode ser uma impressão minha, que parte dessa dimensão afetiva está no livro, e consigo enxergar ali tuas viagens a Garopaba com o Rafa, um trago fatal com ele no Aníbal, o dia em que passamos o primeiro boneco quadro a quadro. Nesse sentido, há algo de pessoal pra mim na Cachalote, que só foi ficar claro quando já estávamos no lançamento, naquela viagem a Ribeirão, enquanto eu arrastava uma mala de livros com o Mojo pela pracinha. Bicho, o Rafa desenhou quase trezentas páginas. Da primeira reunião ? vinte páginas de lápis, ele abanando os braços e explicando as tramas? a centenas de cópias de um troço que eu vi ser feito em todas as etapas. Como eu disse, foi massa.
Mas eu nunca tinha pensado em ser editor, parecia tão distante quanto, sei lá, dar aula de capoeira. Eu estava me empurrando para o jornalismo, mas queria mesmo era ser escritor. Nos primeiros tempos de editora, isso estava claro, só nos últimos anos que fui desistindo da idéia. Mas quer saber? Há um tanto de preguiça, inércia e moleza do ser vital aí. De modo que nesses dias escrevi mais uns parágrafos da Múmia e estou oficialmente animado. E foi divertido passar as anotações. A primeira, um rabisco que decifrei como “Eleanor Roosevelt Has a Penis Foundation”, ainda resolveu um pepino grande bem onde eu estava empacado. Quando chegar num tamanho aceitável, te mando uma cópia. Será nossa oportunidade de reviver a série “Mas ninguém fala assim”, seguida, eventualmente, de “Foda-se, é meu livro e as pessoas falam como eu quiser”.
Tenho uma memória vaga do que te falei da Múmia, mas lembro bem da ocasião em que tivemos a conversa, posto que foi durante um acontecimento grandioso, o matrimônio de nossos amigos João Carlos e Isabel. Nos últimos dois anos, fui tentando recompor as peças daquele fim de semana, e anotei de cabeça algumas coisas que eu sei que aconteceram: conheci o Scott, tive uma longa conversa com ele, ficamos amigos imediatamente e, mais tarde, tivemos a mesma conversa, nos apresentamos de novo, ficamos amigos, lembramos que já nos conhecíamos; dancei com Joana, Renata, Ivana, Bebel (ela riu de meu samba rock), Juliana e Francisco; eu e você bebemos um balde de uísque; voltamos numa van, umas quinze pessoas em silêncio, ouvindo o funk “Vou cair na sacanagem/ nas casas de massagem”; aprendi e dominei os movimentos do forró; desisti de ir embora na penúltima van e ganhei uma dança com a noiva; fui pelo menos cinqüenta vezes ao banheiro; me perdi pelo menos três vezes, uma com risco sério de queda no lago; bateu a nítida sensação de que tinha valido a pena viajar até Fortaleza, não sucumbir ao medo de avião, agüentar o calor pastoso da cidade, vencer a relativa falta de intimidade com quase todos os convidados e me meter nas conversas e nas rodas de forró; guardei no paletó um beijinho de morango, três bem-casados, duas colheres, aquela segunda entrada que serviram, tipo um pastelzinho, mais um canudo e um gelo; fui convencido, por um vendedor na praia, a adquirir um desses santos de madeira que, quando têm a cabeça pressionada, exibem uma vigorosa ereção; me arrependi de ter adquirido o santo, tendo em vista que eu só queria um protetor solar fator 50; fumei dois maços, e ainda cerrei uns cigarros do Ronaldo; fiquei estirado naquela mureta ao lado da pista de dança, um retrato completo da ruína, todo suado, os cabelos de qualquer jeito, a camisa branca infecta grudando, um miasma de nicotina e drinks refrescantes, e tivemos uma crise de riso simultânea, estávamos ali com os poucos amigos que tinham sobrado, todo mundo arruinado e esticando o momento e acho que a gente ainda continuou rindo um tempão disso, e deu um abraço podre, e eu tinha acabado de decidir o título do livro, te contei, a gente foi beber pra celebrar; eu tomei cuidado e bebi bastante água durante a noite, o que não adiantou nada mas no mínimo me deu um senso de propósito; fumei um cigarro apagado na chuva; tive a dor de cabeça mais filha da puta de todos os tempos assim que voltei ao hotel, peguei um táxi, andei uma quadra, desci na farmácia, comprei cafiaspirina, entrei no táxi, voltei para o hotel; o motorista da van que ia nos levar ao casamento se perdeu, não tinha o endereço, e nós estávamos carregando dois padrinhos, o Francisco ia começar o discurso a qualquer momento, e a Joana e a Renata tomaram as rédeas da situação, descobriram toda a rota da van, indicaram os caminhos pro cara, chegamos no minuto final, os padrinhos correram para o palanque e o Joca e a Bel casaram.
Não sei se você também consegue ver uma relação entre essas coisas, mas pra mim é muito claro: o casamento, a Cachalote, o livro do Joca, o Rafa abanando os braços, a viagem a Ribeirão, o cigarro apagado na chuva. Esses acasos foram se multiplicando em outros acasos, uma vinda do Cardoso a São Paulo, um fruto velho que eu fui chutando com o Emilio e o Michel em Paraty, Nesky comendo seu primeiro temaki, uma partida de Street Fighter com o Mojo, Emiliano imitando freio de ônibus, Teteco e o caso da bandeira do estado de Alagoas, a torrada no bolso de Alex Rod, tudo que o Parada diz, tudo que o Hermano faz, o Marcelo totalmente neurastênico. É muito bom (e raro) ter amigos como vocês.
Aproveita aí o tempo de reclusão, qualquer cousa manda um “torpedo”. Também vou dar uma puxada no trabalho e avançar na Múmia, tenho pilhas de livros para editar até o fim do ano e preciso adiantar o serviço. Mas sei que nada disso vale: logo você arruma uma desculpa para vir a São Paulo, eu dou um jeito de ir a Porto Alegre, e alguém há de se casar nesse meio tempo. Mas na verdade o que eu queria dizer era o seguinte: acaba teu livro, eu acabo o meu, o Rafa vai estar terminando Mensur e acho sinceramente que a gente devia fazer outra HQ. Porque foi massa. Porque sim.
Que época pra se viver, diz aí.
Abraços,
André.