Meu patrício, aí tens o mate!

Correspondência

04.02.11

André,

Na quarta série, eu acho, quando ainda morava em São Paulo, tive que fazer uma apresentação artística numa feira do colégio. A professora sugeriu que eu explorasse algo relacionado ao Rio Grande do Sul, porque eu era um gaúcho exótico de oito ou nove anos que dizia “tu” e não sabia o que era Deus nem lendo a torá no original, e por algum motivo escolhi fazer uma leitura de uma canção nativista do Jayme Caetano Braun sobre o chimarrão, vestido a caráter, ou seja, pilchado. Um coleguinha herói fez dupla comigo, o Fernando (eu ia na casa dele jogar Nintendo e assistir Pantanal pra ver a Juma, ele tinha um irmão mais velho que comia moscas).

Lembro de declamar de cor na frente dos colegas estupefatos, de bombacha, lenço, e boina, gesticulando e carregando no sotaque da planura do pampa: “Meu patrício, aí tens o mate! Vai chupando despacito, que é triste matear solito quando a velhice nos bate.” Desse início eu jamais esqueço. Mais pra frente tinha outra estrofe que era mais ou menos assim: “Quando chega ao fim da estrada, se dá conta num segundo que veio e vai deste mundo sofrendo a troco de nada.” Enfim, aflições burguesas. É curioso que, depois de termos nossos corações encilhados tão cedo por apresentações escolares radicalmente diversas, tenhamos nos encontrado mais tarde na encruzilhada e ainda assim seguido juntos.

Essa espécie de autismo relativo no que tange a temas políticos e religiosos me colocou em alguns apertos ao longo da vida. De alguns consegui me safar, de outros não.

Por exemplo, lá pelos quinze anos fui ao acampamento de verão judaico que meu tio rabino dirige nos Estados Unidos. Eu gostava muito da parte religiosa da coisa porque os rituais eram fascinantes e as músicas e as orações eram belíssimas. Participava de tudo, sem exceção, e alguém poderia argumentar que a sensação de comunhão obtida nesses momentos era uma manifestação de ordem religiosa, mas eu as recebia com um deleite puramente estético, a fruição coletiva de uma ficção ao mesmo tempo serena e contagiante. No resto do tempo, eu estava mais interessado nas atividades esportivas e artísticas e no convívio com meus companheiros de cabana, com quem passava tardes cantando músicas do Pantera e tocando air drums ou caminhando dentro de riachos. Como brasileiro, a única coisa que esperavam de mim era que eu jogasse futebol, mas minha incapacidade de sequer dominar a bola e chutar pra frente suscitou frustração e desprezo generalizados nos gringos, resultando numa leve bulição (o que os americanos -estadunidenses, perdão – chamam de “bullying”) pra cima de mim.

Até que um dia resolveram reunir todos os adolescentes do acampamento – dúzias e dúzias – num galpão pra discutir a existência ou não de Deus. Logo pediram que todos se dividissem em dois grupos, os que acreditavam em elohim e os que não acreditavam. Na época eu ainda não conhecia bem a interessantíssima postura de muitos judeus diante dessa questão, então fiquei completamente cagado. Vou ficar sozinho num canto e ser esmagado física, moral e espiritualmente por todo o acampamento, pensei. Mas estufei o peito e me dirigi ao cantinho dos ateus. Duas gurias me acompanharam, o que me tranquilizou um pouco. Por muito tempo, a massa de teístas ficou enumerando argumentos e metáforas a favor da existência divina, do argumento de Pascal às próprias escrituras.

Fiquei calado o tempo todo, obviamente. Só aguardava que aquilo terminasse pra poder voltar pra cabana e abrir um saco jumbo de M&M´s de amendoim. Até que um carinha que eu achava meio antipático ? e que, olhem só, era namoradinho justamente de uma das gurias que assumiram o ateísmo ao meu lado ? tentou expor uma versão meio falhada do argumento ontológico, esquecendo de deixar claro que ele só faz algum sentido quando falamos do “maior ser que se pode conceber” (eu não conhecia o argumento ontológico naquela época, mas detectei a falha no raciocínio), e sem pensar eu levantei o dedo e disse algo como “Se for assim, tu também tá provando a existência do Pateta.” A palavra “Goofy” ressoou no galpão, com uns duzentos olhos apontados pra mim, até que houve uma explosão de risos redentores. O carinha que foi ownado reconheceu que tinha deixado o dele na reta, também riu e veio apertar a minha mão.

Meu status no acampamento subiu muito. Consegui dar uns beijinhos numa russa que quase não sabia inglês e era tão tímida quanto eu. Ela me mandou uma carta quando voltei ao Brasil, que lamentavelmente perdi. Lembro da cor da íris dela, uma mistura de azul celeste, cinza e reflexos prateados.

Não tenho tanta sorte na área do debate político. Uns três anos atrás, quando fui conhecer a editora McSweeney´s em San Francisco, fui informado pela secretária que o Dave Eggers estaria viajando na data. Estava lá conversando com os outros editores quando Michelle, a secretária, surgiu e disse que o Eggers voltou antes do previsto e queria falar comigo. Ele promove semanalmente, no porão da McSweeney´s, um encontro com jovens para debater literatura e editar antologias que saem pela editora. É trimassa. O grupo estava reunido e ele perguntou se eu me importaria de conversar com eles, já que tinham curiosidade de conhecer um autor brasileiro. Desci as escadas feliz da vida.

Num grande porão cheio de sofás velhos, livros, um violão etc, uma dúzia de adolescentes me aguardava. Começou tranquilo, com um par de perguntas sobre literatura, como é escrever e publicar no Brasil. Até que alguém perguntou do Lula. A partir dali, foi uma saraivada de perguntas sobre as ações do governo Lula, sobre o PT, sobre a política e as tensões na América Latina como um todo, sobre Hugo Chávez, sobre a ditadura brasileira, a Amazônia e o futuro da nação. Eram jovens “meio de esquerda” e ultra-informados que certamente discutiam a política mundial todo dia no café da manhã, e a verdade é que eles sabiam mais do que eu e isso ficou nítido. O próprio Eggers, naquela ocasião, parecia bem mais interessado no Lula do que em literatura. Respondi um monte de platitudes ao estilo “Veja bem…” e saí de lá meio humilhado, me sentindo um monstro imperialista.

Conti, eu gosto de ficção em prosa e videogames. De narrativas. Pra todo lado que eu olho, vejo apenas semântica e sintaxe em arranjos de interesse inesgotável. Gosto de ondas, de água em geral e de silêncios prolongados. De cães e de seres em estado natural. A ausência de civilização me instiga, embora eu seja dependente da civilização. Sou um verme reacionário e egocêntrico? Às vezes me preocupo um pouco com isso. A pergunta não é jocosa, mas não precisa responder. Um bom amigo às vezes é alguém que propicia sentido ao ato de falar sozinho.

E véio, não gosto de óculos escuros nem em mulher. Principalmente esses grandões que tão na moda, que eu chamo de oclão. Não curto oclão. Usar por necessidade médica é uma coisa, mas como acessório não consigo compreender. Talvez eu comece a perder a visão logo e tenha que usar. Costuma ser assim.

Abraço,

D. Galera

PS: Vou pra São Paulo na próxima sexta, vou botar som numa festa. Madrugames no finde?

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