No cinema norte-americano do último meio século, poucos diretores terão alcançado a estatura e o poder de influência de Francis Ford Coppola. Sua obra, irregular e monumental, sintetiza boa parte da história recente da própria indústria cinematográfica, com a qual sua relação foi sempre de amor e ódio.
O cineasta Francis Ford Coppola
Uma retrospectiva completa dessa filmografia incontornável está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro e se estende depois para Brasília e São Paulo. São 24 longas-metragens, mais o episódio do filme coletivo Contos de Nova York (1989) e os documentários O apocalipse de um cineasta (1991) e A década que mudou o cinema (2003).
A trajetória de Coppola é singular. Sua formação uniu a prática (trabalhou como assistente de Roger Corman) e a teoria (estudou cinema na Universidade da Califórnia). Aprendeu e exercitou todas as atividades do ofício, do roteiro à montagem, ao mesmo tempo em que realizava seus primeiros longas, como The bellboy and the playgirls (1962) e Demência 13 (1963), produções de baixíssimo orçamento em que a influência de Corman é flagrante.
Década de ouro
Mas a década de ouro de Coppola seria, sem dúvida, a de 1970, em que enfileirou quatro obras-primas: as duas primeiras partes de O poderoso chefão (1972 e 74), A conversação (1974) e Apocalypse now (1979).
Com a saga dos Corleone, o cineasta dialogou com o cinema clássico e redefiniu o filme de gângsteres, associando-o à epopeia e à ópera. O caráter operístico da saga se tornaria explícito, literal, numa cena matadora do terceiro filme da série:
Em A conversação, Coppola tocou num dos nervos expostos de nossa época, a linha tênue entre a privacidade e a vida pública. Em Apocalypse now, mergulhou no coração das trevas não só da guerra do Vietnã, mas da insanidade da guerra em geral.
Os excessos lisérgico-pirotécnicos de Apocalypse de certo modo prenunciavam uma virada, para não dizer uma queda: “Estávamos na selva, éramos numerosos demais, tínhamos acesso a dinheiro demais, a equipamento demais, e pouco a pouco fomos enlouquecendo”, diz o diretor no excelente documentário O apocalipse de um cineasta, co-dirigido por sua mulher, Eleanor Coppola.
O pecado da falência
Na década seguinte, empolgado com as possibilidades eletrônicas de processamento e edição da imagem, Coppola enveredaria por um cinema visualmente exuberante e estilizado, com alguns pontos altos como os subvalorizados O fundo do coração (1981), O selvagem da motocicleta (1983) e Cotton club (1984). Mas o fracasso comercial, sobretudo de O fundo do coração, que levou sua produtora à bancarrota, equivaleu a uma sentença de morte por parte da indústria. Como Orson Welles, Coppola não cabia nas planilhas de custos e lucros e tornou-se quase um pária em Hollywood.
A sorte parecia ter-lhe virado as costas. Um filme encantador como Peggy Sue (1986) deu o azar de ser lançado pouco depois do megassucesso De volta para o futuro, de tema análogo. Para completar, Gio Coppola, filho do diretor, morreu num acidente de lancha aos 22 anos.
Aos trancos e barrancos, Coppola seguiu sua carreira como produtor e diretor, ao mesmo tempo em que produzia vinhos finos em suas terras na Califórnia. Lampejos de sua genialidade continuaram a surgir aqui e ali. Em Tucker (1988), história de um visionário da indústria automobilística esmagado pelas grandes corporações, falou indiretamente de si mesmo, de seu embate com o poder dos grandes estúdios. E a terceira parte de O poderoso chefão (1990) fechou com brilho e dignidade uma das grandes epopeias do cinema.
Nas décadas seguintes, sua produção foi irregular, mas nunca banal ou desinteressante, abarcando desde uma releitura vistosa e personalíssima de Drácula (1992) até um belo drama familiar ambientado em Buenos Aires (Tetro, 2009), passando pelo eficiente thriller de tribunal O homem que fazia chover (1997).
Cinema como arte específica
Inteligente e intelectualmente refinado, Coppola sempre soube filtrar suas referências literárias, pictóricas e musicais e plasmá-las em cinema. Não faz teatro ou literatura filmados, pois conhece a especificidade de seu meio. Assim, a influência de Goethe e de suas Afinidades eletivas perpassa O fundo do coração sem aparecer em primeiro plano, e O coração das trevas, de Conrad, é apenas a centelha que está na origem da viagem existencial de Apocalypse now.
“A emoção está na emulsão”, costumava dizer Coppola a seu amigo George Lucas, referindo-se ao mágico processo fotográfico que faz surgir uma imagem sobre uma película sensível. Por isso, ao iniciar as filmagens de Vidas sem rumo (1983), drama de adolescentes desajustados, comunicou aos membros de sua equipe: “Este é um filme sobre o crepúsculo”. Queria dar a ideia de que tratariam da fugacidade da vida, do paradoxo de que a luz mais bela surge pouco antes de desaparecer na noite. Mas era também uma imagem muito concreta – e a luz dourada e melancólica do crepúsculo impregna todo o filme, como mostra esta cena singela, que aliás se passa ao amanhecer:
Do mesmo modo, antes de começar a rodar O fundo do coração, Coppola disse à equipe: “É um filme sobre o néon”. Sintetizava na frase tanto uma ideia (a de artifício ou ilusão, eixo da narrativa) como uma imagem concreta que orientaria a fotografia e a direção de arte. Um grande artista, em suma, consciente dos poderes e limites de seu meio de expressão. Para encerrar, nada como ouvir o próprio Coppola, falando brevemente, há mais de vinte anos, sobre o futuro do cinema: