A força de quem não tem nada a perder

Colunistas

29.12.15

Quando As sufragistas começa, há vozes em segundo plano reproduzindo o tipo de discurso que havia no parlamento inglês contra a igualdade de voto para as mulheres. Uma das frases – “As mulheres estão muito bem representadas pelos seus pais, maridos e irmãos” – aponta a atualidade política do filme. A reconstituição da luta feminina por direitos civis e trabalhistas passa pela liderança política da feminista Emmeline Pankhurst, vivida na tela por Meryl Streep, e pela força das ideias anarquistas que embalaram as mulheres na campanha pelo voto, depois da derrota na primeira votação parlamentar.

A história começa em 1912 quando a Câmara dos Comuns – constituída apenas por homens – decide não conceder o voto às mulheres. Esgotadas as possibilidades de vitória pelas vias institucionais, as mulheres buscam outras formas de reivindicar seus direitos, formas que, além de lutar pelo sufrágio universal, também denunciam o fracasso da estrutura de representação parlamentar, resumida de maneira exemplar na frase “Não vamos respeitar uma lei que não é respeitável”. Aqui se pode aproximar as sufragetes de 100 anos atrás das mulheres nas ruas hoje,  reivindicando não apenas a derrubada do PL 5069 proposto pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, mas também denunciando sua absoluta falta de legitimidade para representar interesses públicos e coletivos.

Num dos diálogos marcantes, Maud Watts está presa, encara um policial e diz: “Somos metade da humanidade. O senhor não vai poder prender a todas nós”. Estava dado aí um dos argumentos feministas desde a Revolução Francesa, o de que não há regime político digno de ser chamado de democracia sem a participação das mulheres. No rastro da denúncia desta exclusão, vieram outras denúncias de outras exclusões, de tal forma que a luta das mulheres ganhou uma paradoxal marca de luta pelo direito das minorias. 

Entre 1912 e 1928, quando enfim o voto feminino foi aprovado na Inglaterra, as sufragistas intensificaram sua luta a partir de estratégias mais radicais. Quanto mais a repressão policial agia, mais um pequeno grupo de mulheres resistia. Nesse cabo de guerra, a opressão do Estado funcionou – lá como no Brasil de 2013, aliás – como combustível para resistência. Nesse processo, vai se tornando explícito que as mulheres submetidas a regimes de trabalho e de vida social de opressão não tinham mais nada a perder, de tal forma que a prisão ou mesmo a morte já não podiam mais significar uma razão para ceder.

Neste ponto, a luta feminista se encontra com o debate – filosófico, psicanalítico – sobre o feminino e sua atualidade na política hoje. A razão feminina (sintagma que pode parecer paradoxal, já que o feminino reivindica outra forma de razão que não seja a masculina e, portanto, talvez não possa ser chamada mais de razão) interroga os pressupostos do poder e do saber (jurídico, científico, médico, só para ficar com exemplos que me interessam). Ao abalar os pressupostos da razão masculina como sinônimo de razão universal, as sufragistas do início do século XX e as feministas do início do século XXI participam de um processo político amplo que vem mudando a cara do mundo ocidental nos últimos 100 anos. 

Se esta é uma percepção possível a partir do filme, as mesmas cenas também podem nos fazer pensar em tudo que ainda falta mudar. Na lavanderia, elas trabalham mais horas, ganham menos que os homens, em condições insalubres, e estão sujeitas ao assédio sexual do patrão. Os direitos civis vieram, é verdade, mas o lugar de subalternidade na estrutura capitalista ainda é marca de submissão feminina, aqui entendida como opressão a toda e qualquer voz insurgente contra a hierarquia do poder patriarcal. Qualquer semelhança com os tempos que ainda correm não é mera coincidência.

Para uma breve retrospectiva das reflexões da colunista sobre a luta das mulheres em 2015, consulte:

#primaveradasmulheres

Está dada a partida a um referente vazio 

Sobre a plasticidade do machismo na cultura brasileira 

A tal da governabilidade

Receber e reconhecer Judith Butler no Brasil

Sobre sexo, livros e morte 

O cisgênero não existe

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