A maternidade está definitivamente em pauta. Não é coincidência que a campanha “Desafio da maternidade” apareça nas redes sociais ao mesmo tempo em que a reivindicação do direito ao aborto para casos de microcefalia está prestes a ser levada ao Supremo Tribunal Federal. O contexto de disputa é o de sempre: as forças conservadoras pretendem demonizar quem reivindica direito ao aborto. Para isso, se valem de diferentes tipos de argumentos. Há cientistas católicos fundamentando bases teóricas que escondem dogmas de fé, há juristas católicos citando cientistas católicos para sustentar jurisprudências baseadas em dogmas de fé, e há principalmente uma aliança de mulheres católicas em campanha permanente para defender o privilégio da maternidade a partir da deliberada sacralização da maternidade.
Nas redes, o “desafio da maternidade” segue a linha do sagrado. Pede as mulheres que publiquem três fotos nas quais sintam-se felizes por serem mães, apesar de todas as dificuldades. Apela-se para um amor que seria instintivo, natural, e motivo de realização máxima de qualquer mulher. A lógica do sacrifício segue a ideia de que, para que uma mulher experimente a sacralidade de ser mãe, infelizmente é preciso passar por alguns obstáculos, sempre justificados diante da plenitude da realização feminina na maternidade.
O meu problema é discutir de onde vem a força dessa argumentação. É óbvio que toda mãe já experimentou desde as dores do parto até as noites insones (que, aliás, acabam na primeira infância e voltam na adolescência), desde o medo de não saber o motivo do choro do seu bebê ao pânico diante das responsabilidades envolvidas em cuidar de um ser humano que saiu da sua barriga. Mas poucas, muito poucas admitem – para si mesmas ou para a sociedade – as dificuldades que vivem. E as corajosas o suficiente para fazê-lo são linchadas, como aconteceu com a dona de casa Juliana Reis, cujo perfil no Facebook foi bloqueado depois de afirmar que “detestava ser mãe”.
Noto que em nenhum momento a jovem pôs em dúvida seu amor pelo filho, apenas disse com todas as letras que detestava todas as obrigações que lhe são impostas pelo fato de ser mãe. Uso essa palavra – obrigação – porque me parece que em torno dela se pode começar a achar algum sentido para o problema do mito do amor materno e da sustentação de sua sacralidade. Autora da expressão “mito do amor materno”, a francesa Elisabeth Badinter observa que muitas mães sozinhas cuidando de seus filhos expressam apenas tédio e que é a obrigação do amor que fecha às mulheres as possibilidades de realização.
Posto como natural e instintivo, o amor pelo filho já nasce como uma exigência e, ao mesmo tempo, uma decorrência biológica do fato de que há um embrião sendo gestado dentro do corpo da mulher. Separa-se, aqui, o amor das mulheres por seus filhos – fundamentado na natureza – do amor dos homens pelos seus filhos, cuja origem seria cultural. A divisão se expressa nos ditados populares mais tolos – “mãe só tem uma”, “ser mãe é padecer no paraíso” –, na legislação, que permite que uma criança seja registrada apenas com o nome da mãe, mas não apenas com o nome do pai; e diferencia o prazo da licença maternidade em função do tempo de amamentação.
Por decorrência, a afirmação da sacralidade do amor materno promove também o seu avesso, a exclusão dos homens do que hoje se chama parentalidade, termo com o qual se pretende fazer dos filhos responsabilidade e amor compartilhado por duas pessoas, inclusive as homoafetivas que optam por adoção. As poucas mulheres corajosas capazes de ver a função materna a partir de um olhar crítico são apontadas como megeras, bruxas, loucas ou pior, quando na verdade o que se está tentando fazer é não sacralizar as obrigações – a palavra volta pela sua importância – que a maternidade impõe histórica e exclusivamente sobre as mulheres. Transformar um filho em um fardo pesado a carregar é a pior forma de amor que uma mulher pode oferecer a uma criança. A contrapartida disso é “ser pai quando dá”, a prova máxima que ainda falta muito para chegar ao ideal da parentalidade. Falta também a muitas mulheres que enlouquecem achando que o filho é um objeto, propriedade exclusiva delas, as únicas supostamente capazes de amá-lo.
Do meu ponto de vista, o pior da obrigação que sustenta o mito do amor materno é o fato de que, numa grande maioria dos casos, a vida da criança passa a ter valor relativo maior do que a vida da mulher. A partir do momento em que se torna mãe, a natureza teria o poder de trocar seu lugar e papel social de mulher para mãe, tanto e a tal ponto que sua existência fica imediatamente inferiorizada em relação à do seu filho. Talvez seja isso que Juliana expressa quando diz que “detesta ser mãe”. Talvez seja isso que os desafios da maternidade ocultem, o fato de que ser mãe não poderia ser excludente de ser mulher, como querem os discursos conservadores baseados na premissa de que a maior das realizações de uma mulher é cumprir o destino natural para o qual foi feita, parir. As obrigações da maternidade se tornam o caminho pelo qual uma mulher põe no mundo uma criança que vai imediatamente exigir que ela abandone a identidade de mulher pela de mãe, no seu ideal de pureza assexuada e felizmente inalcançável.