Talvez não seja possível precisar exatamente quando começou, mas em um certo momento começamos a achar normal a invasão, no idioma, de termos como “investimento afetivo” ou “relação custo-benefício”. Fidelizar, disponibilizar, agregar valor, sinergia, reengenharia, empreendedorismo e outras tantas expressões intrusas, anglicismos cafonas, quase tão cafonas quanto os deputados e seus discursos esdrúxulos na Câmara, foram aparecendo na fala nossa de cada dia. De modo quase imperceptível, a linguagem – que nunca é neutra – , foi sendo tomada de assalto por essas palavras que em muitos casos não dizem nada, e por isso mesmo dizem tanto sobre si mesmas. Esta percepção do estranhamento com as palavras já me acompanha há muitos anos me voltou à memória na leitura de A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo, tradução de Mariana Echalar), de Pierre Dardot e Christian Laval. Os autores defendem uma nova idéia para o neoliberalismo, conceito gasto e corroído pela multiplicidade do jogo de forças que pretende defini-la. Para os sociólogos franceses, neoliberalismo “é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade”.
Neste ponto – a mais íntima subjetividade – está a minha hipótese de articular o livro com a invasão desses significantes estranhos, capazes de migrar do universo econômico para a as relações sociais de modo mais geral. Afetos, escolhas, amizades, família, religião e política acabam impregnadas dessa lógica de mercado que estabelece normas de conduta a partir de padrões inalcançáveis de eficiência e performance. Neste diagnóstico do neoliberalismo como a imposição de um modo de vida está uma importante diferença entre os autores de “A nova razão do mundo” e outros críticos do capitalismo contemporâneo, como o inglês David Harvey e os franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello.
Do primeiro, os autores citam diferentes obras para divergir num aspecto fundamental. Enquanto para Harvey o estágio atual do capitalismo é uma exacerbação do diagnóstico marxista de que tudo é mercadoria, para Dardot e Laval o neoliberalismo é aquilo mesmo que o nome quer dizer, uma nova forma de liberalismo que não pode ser pensada como mera continuidade das anteriores. Uma das novidades é a pior possível: a lógica gerencial se espalha do campo econômico para a sociedade e a política e traz com ela aquelas palavras a que me referi inicialmente.
Nisso, Dardot e Laval se parecem mais com o exaustivo trabalho de pesquisa dos sociólogos Luc Bolstanki e Ève Chiapello, autores de O novo espírito do capitalismo (WMF Martins Fontes, tradução de Ivone Benedetti). São páginas e páginas de leituras de manuais de gestão empresarial, escritos principalmente a partir dos anos 1980, quando o modelo de negócios vai ganhando configurações capazes de enfrentar e esvaziar as críticas ao modo de vida capitalista e suas instituições. Publicado na França em 1999, o livro identifica no uso do termo “rede” (operar em rede, envolver equipes, criar times de trabalho, desverticalizar, horizontalizar) o modo como as grandes corporações se apropriaram das críticas vindas dos protestos de maio de 1968 contra tudo que se pretendia um “ponto fixo”, como Estado, família, tradições e instituições em geral. Hierarquias deram lugar a outra palavras que pretendiam evocar liberdade, como mobilidade, fluidez, liquidez e volatilidade, mas acabaram usadas também pelos sistemas de opressão.
As novidades na forma, no entanto, não parecem suficientes aos autores de A nova razão do mundo. Para eles, o importante é mostrar como, no neoliberalismo, a concorrência, método capitalista por excelência, despreza qualquer regulação de trocas e destitui o Estado do papel de conter o mercado a partir de regras do direito público. A supremacia da gestão privada se expande das empresas para a vida e para a “arte neoliberal de governar os indivíduos”.
Amplamente inspirados na filosofia de Michel Foucault, os autores discutem como articular a subjetivação à resistência ao poder. Resistir, se é possível, passa também, penso eu, por recusar um vocabulário do capital que reforça a formação de um “sujeito neoliberal”, submetido a normas apresentadas como novas formas de autonomia e liberdade – ou a tão prometida liberdade do capital. Resistir pode ser tentar expressar outras coisas por outros meios, seguindo aqui argumento do filósofo Cláudio Oliveira sobre o vigor do pensamento artístico brasileiro. Resistir pode ser, seguindo a bela tese de Julia Naidin sobre Foucault, viver atento à normatividade do novo, seguir por uma “vida outra”, onde as singularidades dos sujeitos abrem espaço para outras palavras e outras coisas.