Boal e o “milagre brasileiro”

Literatura

31.05.16

O Brasil não era politicamente menos dramático que hoje naquele 25 de abril de 1984 em que Fernanda Montenegro pegou caneta e papel para escrever ao amigo Augusto Boal, que vivia já há muitos anos de ditadura fora do país. Redigida à mão em duas folhas bem caligrafadas entre momentos de euforia com a expectativa da votação e de decepção com a derrota da emenda das Diretas Já no Congresso, a carta termina com a perplexidade atemporal de todo brasileiro: “Não sabemos o que vai acontecer.” Nunca sabemos.

Trinta e dois anos após a agonia daquela noite sem final feliz, a atriz leu cópia de sua carta original em vídeo produzido para a exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio, que reabre a Pequena Galeria do IMS-RJ no próximo sábado (4/6).

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Mais que um reencontro com as memórias daquela geração de artistas, Fernanda Montenegro se deu conta durante a gravação de sua leitura da carta – realizada na casa da atriz, no Rio, em 14 de abril de 2016 – de alguns pontos que considera “elucidativos” das incertezas políticas da atualidade brasileira. Ela comenta para a câmera operada por Laura Liuzzi, do Núcleo de Vídeo do IMS: “Com um governo qualquer – ou sem qualquer governo – vamos sair vivos. O Brasil vai sozinho, é um milagre.”

Entre reflexões políticas entusiasmadas e pessimistas expressas cada uma a seu tempo nos extremos da tal carta de 1984, a missiva tem como recheio outra paixão mobilizadora de Fernanda e Boal: o teatro. A certa altura da resenha dela, o drama de Brasília dá lugar à comédia de humor quase negro ao tentar dimensionar o enorme sucesso que a atriz vinha fazendo nos palcos em turnê nacional com As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, do alemão Rainer Werner Fassbinder: “Francamente, se o Fassbinder esperasse um pouco para morrer, é possível até que não se matasse… Estourar no Brasil…” Outro milagre brasileiro.

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A nova atração da Pequena Galeria do IMS-RJ substitui Rio, papel e lápis – desenhos de Cássio Loredano – com a proposta de reunir a correspondência mais pessoal do criador do Teatro do Oprimido durante os anos de seu exílio político, de 1971 a 1986. A curadoria de Eucanaã Ferraz privilegiou cartas recebidas de caros amigos, em meio à extensa troca de ideias profissionais em documentos escritos preservados no acervo do Instituto Augusto Boal.

Durante o período em que viveu fora do país com a família – residente em Buenos Aires, Lima, Lisboa e Paris –, o diretor que começou a fazer história no legendário Teatro de Arena, em São Paulo, se relacionou com praticamente todo mundo artístico livre, mas o interesse específico desta mostra do IMS se concentra em mensagens que tocam mais intimamente o artista em seu desterro.

Há cartas de sua mãe, dona Albertina, e de parceiros queridos. Alguns, como Chico Buarque e Fernanda Montenegro, toparam protagonizar a leitura do que escreveram há mais de três décadas a Boal em vídeos que poderão ser assistidos na mostra, em cartaz até 21 de agosto de 2016.

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