Acabam de chegar às livrarias dois títulos que, à primeira vista, em nada se parecem. A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil, da jornalista Leneide Duarte-Plon (Civilização Brasileira) e Gênero e trabalho no Brasil e na França – Perspectivas interseccionais, coletânea de artigos organizada pelas pesquisadoras Alice Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi (Boitempo Editorial) discutem temas muito distintos. No entanto, ambos os livros têm em comum o debate das difíceis e intrincadas relações do Brasil com a França, em relação a quem o país ocupa uma posição ambígua. Por um lado, adota historicamente uma política de subserviência, como mostram as pesquisas de Leneide sobre a participação francesa no desenvolvimento das técnicas de tortura amplamente usadas pela ditadura militar de 1964. Neste quesito, é como se também tivéssemos sido colonizados pelos franceses, independente das querelas entre os historiadores sobre a existência da França Antártica. Basta lembrar que a reforma urbana do Rio de Janeiro foi inspirada no projeto parisiense. Por outro lado, embora no campo intelectual, cultural e acadêmico a França ocupe lugar privilegiado e de referência – tanto a ponto de o livro sobre gênero reunir uma ampla gama de pesquisas bilaterais –, os ensaios comparativos entre as condições da mulher no mercado de trabalho brasileiro e francês mostra resultados desastrosos. No item discriminação, não somos em nada melhores do que os franceses.
As pesquisas de Leneide exploram um tema que já foi tabu – o uso da tortura como política de estado –, e cuja atualidade na sociedade brasileira é fácil de perceber. Em abril, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi lembrado no plenário da Câmara na votação do impeachment da presidente Dilma Roussef. A condenação à tortura foi motor de inúmeros depoimentos nas comissões da verdade e, por mais esforços que já tenham sido feitos para denunciá-la como parte das práticas cotidiana das polícias militares, sua manutenção ainda é tida como parte natural de um projeto de segurança pública que tem como objetivo criminalizar pobres, negros e moradores de periferias.
Radicada na França há décadas, o trabalho de Leneide tem como eixo central as entrevistas que fez com o general francês Paul Aussaresses, responsável pela implantação da tortura como arma de guerra na Argélia, nos anos 1950, e por sua exportação para os países do Cone Sul: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. As ditaduras latino-americanas se serviram dos ensinamentos de Aussaresses e da doutrina francesa que elaborou a tese do “inimigo interno”, com a qual os militares brasileiros desenharam a doutrina de segurança nacional herdada e mantida pelos governos civis. Por inimigo interno entenda-se intelectuais, comunistas, operários, estudantes, artistas, e todos aqueles que possam ser identificados como simpatizantes de ideias tidas como “subversivas”. Para a experiência brasileira, Leneide mostra como os militares franceses contaram com ampla colaboração com seus pares brasileiros. Desde o fim da ditadura, deixaram a tortura como arma de combate e destruição e a noção de inimigo interno que ainda orienta a ação do Estado.
Em Gênero e trabalho no Brasil e na França, os 23 artigos são escritos por brasileiras e francesas dedicadas ao tema da desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Numa das organizadoras, Helena Hirata –socióloga brasileira radicada em Paris desde que partiu para o exílio nos anos 1970 – está o eixo do diálogo entre Brasil e França. Feminista materialista, ela faz parte da chamada segunda onda do movimento de mulheres brasileiro, na qual o confronto com o ideário marxista foi inexorável. Era preciso, como lembrou Hirata em palestra no lançamento do livro na UFRJ, enfrentar o fato de que o trabalho oferecido às mulheres funcionava como estoque de reserva para reposição de mão-de-obra em tempos de crise. Foi o que aconteceu na Segunda Guerra, quando a evasão de homens para as trincheiras abriu oportunidade de emprego. Postos nestes termos, o trabalho feminino se manteria como secundário, variando conforme a demanda e portanto impedindo que mulheres se estabelecessem no mercado.
No seu conjunto, o livro mostra que, lá como cá, as mulheres ganham menos, desempenham tarefas secundárias, têm diante de si menos e piores oportunidades de carreira, são discriminadas e sobrecarregadas com o trabalho doméstico e o cuidado das crianças, atividades não compartilhadas também pelos homens franceses. Se o machismo não é privilégio brasileiro, tampouco a subserviência em relação à França nos serviu para alcançar os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que inspiraram a Revolução Francesa e marcaram a entrada da Europa na modernidade política, já então denunciada pelas mulheres como uma farsa.