La la land chega aos cinemas brasileiros embalado por uma penca de globos de ouro e uma maciça divulgação – paga e gratuita – na mídia. A primeira coisa a fazer é tentar impedir que tamanho estardalhaço interfira na fruição e apreciação do filme em si, bem como de sua inserção na história do cinema norte-americano, em particular no gênero musical.
Afinal, o filme do jovem diretor Damien Chazelle se apresenta como um misto de renovação, homenagem e leitura crítica do musical hollywoodiano, um dos pilares da “fábrica de sonhos” e de toda a cultura de massa americana.
Já as primeiras imagens são eloquentes, para não dizer ostensivas. Num elevado completamente congestionado – inferno cotidiano dos moradores de qualquer metrópole – motoristas e passageiros deixam seus carros e passam a dançar alegremente, numa coreografia precisa, elaborada e, no fundo, inócua. Somada à sequência seguinte, de cantoria e dança no apartamento que a protagonista Mia (Emma Stone) divide com um punhado de amigas, essa abertura faz temer pelo pior, isto é, por uma artificialidade excessiva e despropositada mesmo para um gênero que pressupõe o artifício e uma certa falta de propósito.
O cotidiano e o sonho
Os grandes musicais da era clássica hollywoodiana, mesmo os mais delirantes, quase sempre se basearam num equilíbrio entre o cotidiano e o sonho, o real e a fantasia. Quando os atores se punham a dançar e o cenário a se mover magicamente, tingindo-se de cores falsas, geralmente o espectador já estava envolvido com os personagens, seus desejos, temores e aspirações. O início de La la land, ao contrário, parece sugerir uma fantasia que brota do nada e gira em falso sobre si mesma.
Felizmente, porém, a narrativa em seguida ganha substância, os protagonistas adquirem carne, osso e personalidade, o espectador (pelo menos este que aqui escreve) entra no fluxo.
O par central é o de tantos outros filmes: Mia é aspirante a atriz e trabalha numa lanchonete de estúdio, Sebastian (Ryan Gosling) toca piano num restaurante careta e sonha com sua própria casa noturna de jazz. Também como em tantos outros filmes, a primeira aproximação entre eles é de atrito, desacordo, antipatia. Sabemos desde o início onde isso vai dar. A questão é saber como os realizadores vão lidar com os dados dessa equação, como vão manipular os clichês à disposição.
E o que chama a atenção é justamente o modo como Hollywood, de tempos em tempos, a pretexto de questionar ou problematizar seus clichês, acaba por reafirmá-los. Em La la land essa operação abarca alguns dos mais recorrentes lugares-comuns do imaginário americano: a máxima de que vale a pena “acreditar em seus sonhos”, a ideia de que no meio da multidão há alguém especial para cada pessoa, o mito do self made man (ou woman).
Não há nada de muito revolucionário aqui, portanto. Um modo mais crítico e menos idealizado de abordar esses clichês aparece, por exemplo, em No fundo do coração, de Francis Coppola, ou em New York, New York, de Martin Scorsese, para citar duas outras tentativas de renovação do musical.
Diálogo com a tradição
Mas isso não quer dizer que La la land não desenvolva um diálogo criativo e interessante com a tradição do gênero e do cinema americano em geral. As referências são inúmeras, multiplicando as camadas de leitura. Além das alusões explícitas a vários clássicos, há sugestões um pouco mais sutis. Um exemplo é a cena em que, enquanto procuram o carro de Mia ao final de uma festa vespertina, com a cidade de Los Angeles ao fundo, ela e Sebastian passam de repente da caminhada à dança, lembrando uma cena análoga entre Fred Astaire e Cyd Charisse em A roda da fortuna. Quando conversam caminhando por uma rua do estúdio, com suas construções cenográficas, os protagonistas fazem pensar em William Holden e Nancy Olson numa cena similar de Crepúsculo dos deuses.
Na bela sequência em que o casal invade à noite o planetário vazio, há a homenagem expressa a uma cena célebre de Juventude transviada, mas também, talvez, uma piscadela de olho a um filme mais recente, Magia ao luar, de Woody Allen, em que há uma passagem romântica num observatório astronômico, protagonizada pela mesma Emma Stone.
Uma chave interessante para entender a relação de La la land com a tradição talvez esteja no diálogo entre Sebastian, cultor nostálgico, quase anacrônico, do jazz tradicional, e um parceiro músico mais pop (John Legend), que defende uma modernização do gênero para sua sobrevivência. O filme de Damien Chazelle parece hesitar entre as duas posturas. Alcança seus melhores momentos, a meu ver, quando arrisca voo próprio, bebendo na tradição mas descolando-se de suas convenções, como na bela sequência de “realidade alternativa”, em que, durante a execução de uma canção num clube noturno, desfila pela tela toda uma “vida que poderia ter sido”.
Essa faculdade de sonhar com pelo menos um dos pés no chão cotidiano é o que o grande musical hollywoodiano nos propiciou de melhor, e que La la land ocasionalmente resgata.
Cabe uma última palavra sobre a escolha dos dois protagonistas. Emma Stone e Ryan Gosling têm, logo de cara, a vantagem de ser atores carismáticos sem excesso de beleza ou de brilho. Não chegam a ser terra a terra como o Frederic Forrest e a Teri Garr de O fundo do coração, mas são quase “gente como a gente”, além de bons atores que cantam e dançam de modo mais do que satisfatório, desde que não os comparemos a Gene Kelly e Cyd Charisse. Há, ademais, um curioso e positivo contraste entre o modo de atuar dos dois: enquanto Gosling mantém praticamente a mesma expressão do início ao fim do filme, Emma Stone, até por encarnar uma atriz, recorre numa única cena a uma vasta gama de olhares, gestos e reações faciais. É algo bonito de ver e ouvir.