O ator Paulo Gustavo

O ator Paulo Gustavo

A hora da comédia, a comédia da hora

No cinema

20.01.17

“Numa terra radiosa vive um povo triste”, escreveu celebremente Paulo Prado no começo de seu Retrato do Brasil. Talvez por isso tenhamos tanta necessidade de rir – de nós mesmos, por suposto. No atual e conturbado momento em especial, as comédias estão com tudo: dos dez filmes brasileiros de maior bilheteria em 2016, nada menos que sete pertencem ao gênero (veja a lista no final deste texto).

O fenômeno da hora é Minha mãe é uma peça 2, de César Rodrigues, que já passou dos seis milhões de espectadores e caminha firmemente para se tornar a terceira maior bilheteria brasileira dos anos 2000, atrás apenas de Os dez mandamentos (cuja performance foi inflada por ingressos comprados pela igreja que o produziu) e Tropa de elite 2.

Maternidade contemporânea

As razões de tamanho sucesso são várias, como sempre. Em primeiro lugar, o escritor e ator Paulo Gustavo parece ter tocado um nervo sensível de nossa época, especialmente entre a classe média das grandes cidades: os dilemas da maternidade em tempos de mudanças velozes de costumes e valores sociais, morais, estéticos etc.

Hermínia, a mãe neurótica de meia-idade encarnada pelo autor/ator (que diz ter-se inspirado na própria mãe), é uma personagem ao mesmo tempo singular e extremamente universal. Uma das boas sacadas do enredo é colocá-la como desbocada apresentadora de um talk show voltado para as questões maternas contemporâneas, com destaque para a orientação sexual e profissional dos filhos.

O talento exuberante de Paulo Gustavo como dialogista e ator certamente também contribui para essa empatia com o espectador. Menos estridente do que no primeiro filme, ele oferece ao público uma profusão de diálogos saborosos, atentos ao linguajar e à prosódia populares.

Mas o êxito da empreitada só é completo, paradoxalmente, porque o filme é muito pouco “cinematográfico”, isto é, porque se enquadra muito mais num formato que (des)educou audiovisualmente as plateias brasileiras de classe média nas últimas décadas: a sitcom televisiva. Como a maioria das mal-chamadas “globochanchadas” que conquistaram o mercado nos anos recentes, o humor de Minha mãe é uma peça baseia-se sobretudo em situações estáticas, diálogos cômicos e atuações histriônicas, quando não histéricas.

Os penetras 2

Compare-se, por exemplo, sem juízo de valor, a linguagem visual de Minha mãe é uma peça com a de outra comédia recente, Os penetras 2 – Quem dá mais?, de Andrucha Waddington. Neste, independentemente de seus altos e baixos, há uma tentativa de dialogar com duas fortes tradições cinematográficas, a dos filmes de vigaristas (de chanchadas brasileiras a farsas de Risi e Monicelli; de Os safados, de Frank Oz, às sátiras malandras de Hugo Carvana) e a da screwball comedy, a comédia maluca que floresceu em Hollywood a partir dos anos 1930.

Em contraste com a fixidez quase teatral das cenas e situações de Minha mãe…, em Os penetras 2 o movimento – dos personagens, da trama, da câmera – é quase frenético. O delirante enredo coloca em cena um punhado de trapaceiros que buscam passar a perna uns nos outros, mas que se unem para roubar de um milionário russo (Mikhail Bronnikov) informações preciosas sobre a localização de jazidas petrolíferas.

O protagonista, mais uma vez, é o malandro ingênuo Beto (Eduardo Sterblitch). Seu parceiro no filme anterior, Marco (Marcelo Adnet), morre logo no início da narrativa, depois de sumir com todo o dinheiro do golpe que aplicaram juntos. Reaparece, entretanto, como fantasma-conselheiro do bobalhão. Estão de volta a sirigaita Laura (Maria Ximenes), a russa Svetlana (Elena Sopova) e o veterano Nelson (Stepan Nercessian).

Cinema e televisão

Há sequências muito boas, como a de um leilão milionário de obras de arte, em que se utiliza com habilidade a movimentação de câmera e a profundidade de campo, e as que envolvem a intervenção dos silenciosos e inescrutáveis guarda-costas russos.

Nem todas as piadas funcionam, o ritmo talvez seja acelerado demais, e Andrucha Waddington, homem de cinema, com uma dezena de longas no currículo, paga tributo ao humor televisivo já na escalação de seus principais atores.

Adnet, na tela grande, está longe de seu desempenho na televisão e parece perder o timing em alguns momentos. O protagonista Sterblitch, que despontou no Pânico na TV, tem um rosto expressivo que vai de Johnny Depp a Peter Lorre, passando por Buster Keaton, mas resvala por vezes num evidente overacting, mesmo levando em conta a estupidez do personagem e sua frequente intoxicação alcoólica. Já Stepan Nercessian valoriza cada pausa, cada olhar, cada mínimo erguer de sobrancelha. É um “animal cinematográfico”, com quase meio século de atuação no meio.

Pensando bem, talvez sejam Andrucha e Stepan os verdadeiros penetras nessa festa da comédia global que estamos presenciando. Por isso ficam na poeira de outras produções que seguem mais à risca as fórmulas de sucesso.

E aqui vai a prometida lista dos filmes brasileiros de maior bilheteria em 2016. A fonte é o Boletim Filme B:

  1. Os dez mandamentos: 11,3 milhões de ingressos / R$ 116,8 milhões
    2.Minha mãe é uma peça 2: 2,8 milhões de ingressos (só em 2016) / R$ 36,9 milhões
    3. Carrossel 2: 2,5 milhões de ingressos / R$ 28,5 milhões
    4. Até que a sorte nos separe 3: 2,4 milhões de ingressos / R$ 30,7 milhões
    5. É fada!: 1,7 milhão de ingressos / R$ 20,7 milhões
    6. Tô ryca: 1,1 milhão de ingressos / R$ 14,7 milhões
    7. Um suburbano sortudo: 1 milhão de ingressos / R$ 14,3 milhões
    8. Vai que dá certo 2: 923 mil ingressos / R$ 11,9 milhões
    9. Um namorado para minha mulher: 662 mil ingressos / R$ 9 milhões
    10. O vendedor de sonhos: 611 mil ingressos / R$ 8,2 milhões

 

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