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Meu bem, também:
como você sabe, a coragem ou a bravura são qualidades que eu admiro. Admiro tanto, porque sinto falta delas, suficientemente, em mim. O engraçado é que encontrei em duas amigas íntimas, como são você e Helô, a bravura e a coragem onde, muitas vezes, pego carona ao me lembrar da atitude de uma e de outra em frente à vida e vou com vocês em punho, cada uma com sua sigla, que em você lembra uma arma de fogo, MRK, e nela a de uma bomba de gás, HBH! Enquanto a minha lembra, apenas, um ruído fanhoso de alívio, AFF.
Parece brincadeira. É e não é. Já que não saio sem vocês nos meus coldres; nunca saio de mim, esquecendo-as. A minha vida interior precisa desse… alimento, desses exemplos, que me ajudam até quando penso como um machista part time que sou: se uma mulher pode, como um homem não poderá? Usufruir da própria sensibilidade é o maior barato, mas ser governado por ela, como é o meu caso, é um desastre, preciso de ajuda. E ainda: brigar e implicar com vocês, quando pinta, é uma prova daquelas, é uma prova oral de matemática precisando de nota, é como ir para uma academia e malhar até cansar, ou ir para um ringue e treinar à vera, ainda mais porque as oponentes – uma de cada vez, por favor – conhecem a fundo o adversário, com muitos calcanhares de Aquiles, e com uma sensibilidade à dor, e, portanto, com um “queixo de vidro” que não dá para proteger em nenhum momento, satisfatoriamente.
A fragilidade exposta, quando por escrito, fica exagerada. Afinal, tenho a minha “navalha na liga”: o rancor que dura anos, companhia malsã, mas companhia, que, às vezes, acaba me cortando mais do que ao outro. Até porque o que pode ser mais íntimo que um inimigo bem plantado e cultivado? Como esquecê-lo?
Quanto à fobia, você sabe, tive a minha na idade que você teve a sua e que durou dois anos. Foi fogo na roupa. Tenho a impressão que ninguém se cura definitivamente de um troço desses. Tenho a impressão que ninguém se cura de nada, por assim dizer. Pelo menos eu, definitivamente, não me curo. Vou sendo remendado, vida afora, até o dia em que o patchwork não vai aguentar mais, e se rasgará, sem remédio, na última lavagem, ficando imprestável mesmo para o uso caseiro. No máximo, poderá ser aposentado, guardado por quem, e por quanto tempo?
É o que vivo me perguntando nesses dias contados aqui nessa tela, nessa janela iluminada, ou no escuro do quarto fechado. Dias contados, sim, não foi à toa que essa expressão saiu espremida.
Falando nisso, em espremer e exprimir, achei bela, bela, a história do seu outro nascimento, pois eu considero que começar a escrever para fora, para publicação, é um tipo de nascimento, já que a gente não sabe que cara vamos ter no que vai saindo escrito e escarrado. A imagem de apoiar a testa na máquina e tirar um soninho por cerca de dez minutos para ganhar força e clareza, como se tivesse sendo amamentada por si mesma, merecia ser pintada à la Vermeer (não faço por menos): “A moça na máquina de escrever” é o título do quadro imaginário! Como compreendo esse esforço que escrever impõe, em qualquer quadra da vida. Se não fosse assim, como poderia ter escrito, semana passada, o que segue em baixo com a tinta ainda fresca e com um beijo:
ESCRITO
A mão passa espremida
por entre as grades
[a sensação é essa]
e apanha a caneta
do outro lado, e escreve
assim, constrangida
sobretudo, sobre o mundo
de dentro, de fora, mas
sempre sobra, falta alguma coisa
quando já se largou
a caneta para a mão sair
do aperto, e quando se tenta
apanhá-la de novo para
o acréscimo, corte, reparo
ela rolou, longe do meu alcance.