A palavra encenada

Correspondência

15.08.11

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Caro Zé Geraldo,

 

Assim como quem não quer nada, você deu uma verdadeira aula – nada professoral, bem entendido – sobre as relações entre cinema e literatura. E fiquei também pensando naqueles filmes não baseados em livros, mas que nada ficam a dever à grande literatura, como A Doce Vida, de Fellini, Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti. São filmes que vi várias vezes, sempre me emocionando. Já na linha da literatura no cinema podíamos também mencionar Os vivos e os mortos, de John Huston, baseado no conto “Os mortos”, de James Joyce, em que Huston prestou uma homenagem perfeita ao escritor irlandês.

Quanto à minha relação com o cinema, ao que tudo indica ela prosseguirá, pois o produtor Rodrigo Teixeira está garantindo para novembro as filmagens de “O gorila”, do livro O voo da madrugada. E David França Mendes está tocando um projeto para filmar a novelinha O monstro. E há ainda, como te disse, os primeiros rumores de O livro de Praga, o filme.

Mas, curiosamente, ao escrever eu me sinto muito mais próximo do teatro e das artes plásticas do que do cinema. Mas às vezes esbarro com certas limitações comerciais. Um romance de geração e A tragédia brasileira, ambos romances-teatro, pouco vendem. Muitas vezes apontei A tragédia brasileira como o meu preferido entre os livros que escrevi, com o que só concordam poucos leitores, ao que parece.

Também ao assistir alguma mostra provocante de artes plásticas, me sinto instigado a escrever. Tenho um conto, “Cenários”, que foi detonado quando me deparei, no Museu de Chicago, com o quadro Nighthawks, de Edward Hopper, este grande retratista da solidão e da vida americana. E outra vez também saí de um museu norte-americano, no Wisconsin, com um conto já pronto na cabeça, “Uma visita domingo à tarde ao museu”, que é simplesmente uma enumeração de obras vistas por dois grupos separados de turistas, que depois acabam por olhar uns aos outros, interminavelmente.

Estou falando muito de mim nesta carta, Zé, mas resolvi não me reprimir, porque acho que são vivências interessantes para expor. E lá vão mais duas. O espetáculo O olhar do surdo, do grande diretor de vanguarda, o americano Robert Wilson, que pude assistir em Iowa City, mudou para sempre a minha cabeça e minhas concepções estéticas. Tratava-se de um espetáculo de quatro horas de duração, começando com uma criança que grita ao passar por um trauma que desorganiza sua mente e, a partir daí, são as imagens do seu inconsciente que desfilam no palco, como num sonho, em lento movimento e no mais absoluto silêncio, até que, no final, muito aos poucos, entra em cena uma orquestra de músicos vestidos de macacos que executa O Danúbio Azul, de Strauss.

Aliás, Wilson trouxe ao Brasil seu espetáculo A vida e a época de Joseph Stalin, com doze horas de duração. Saímos de Belo Horizonte para São Paulo, minha mulher e eu, exclusivamente para ver a peça, que à última hora foi proibida pela censura da pátria armada. Como Wilson não manifestava nenhuma opinião política em seu teatro de associações livres, a peça acabou sendo liberdade com a simples mudança do título para A vida e a época de Dave Clark. Há um livro da editora Perspectiva, imperdível para quem ama o teatro, com o título de Os processos criativos de Robert Wilson, do já falecido Luiz Roberto Galizia.

Mas não poderia falar de teatro sem mencionar aquele espetáculo, no meu entender e no de muita gente, o maior de todos já realizado no Brasil, Macunaíma, de Antunes Filho, dirigindo uma adaptação do francês Jacques Thieriot do romance de Mário de Andrade. Aliás, Antunes não negava, entre suas influências, Bob Wilson, assim como Kazuo Ohno e Pina Bausch.

Como fiquei amigo do pessoal do grupo do Antunes, fui convidado algumas vezes para ver os bastidores de Macunaíma e de Nelson Rodrigues, o eterno retorno, também do diretor paulista. Esta experiência está narrada no meu conto “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, e também posso dizer que nunca mais fui o mesmo depois dela.

E que mais, Zé? Termino dizendo que, apesar das referências ao cinema e ao teatro, um dos maiores prazeres que tenho na vida é o ato de ler, simplesmente. Deitar-me à noite com um livro na mão e deixar-me conduzir pelos universos paralelos da escrita dos bons autores. E não nos esqueçamos que o grande Borges se considerava sobretudo um leitor. E é preferível não acreditar na existência de um Deus onipotente do que aceitar que o maior de todos os leitores ficou cego.

Desculpe a carta tão autorreferente, Zé Geraldo, mas deixei apenas que minha mente fluísse para escrevê-la com toda a liberdade, e espero que faça jus à sua carta que tanto prazer me trouxe.

 

Um grande abraço do Sérgio.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: cena do espetáculo Macunaíma (1978), com direção de Antunes Filho (foto de Emidio Luisi/divulgação)

 

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