Aconteceu assim: terça de tarde, dia seis de setembro, meu amigo Bruno abriu uma janela de chat e me informou que Garry Kasparov, o lendário enxadrista russo, jogaria ao vivo com 20 pessoas ao mesmo tempo no centro de Porto Alegre dentro de uma hora. Primeiro, achei que fosse piada. Então, em seguida, ele me enviou o link para uma matéria de jornal confirmando a história. Que diabos. É o tipo de coisa tão absurda que não se pode perder. Calcei os tênis e peguei o primeiro ônibus que me levava até o centro da cidade.
No Chalé da Praça XV, uma massa se reunia do lado de fora de um salão de vidro onde se realizaria a partida. Juntei-me à multidão e, através do vidro, enxerguei vinte tabuleiros espalhados em uma mesa em forma de U. Enquanto isso, várias “celebridades porto-alegrenses” (usando um termo ouvido entre a plateia) começaram a se sentar. Eles eram os corajosos que se dispuseram a enfrentar o enxadrista russo. Entre reitores e locutores, se encontravam duas crianças que, provavelmente, sabiam jogar xadrez melhor que todos os outros desafiantes. A expectativa pela chegada de Kasparov era alta.
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A relação entre literatura e xadrez é tão constante que suspeito que todos os países ocidentais já tiveram algum grande narrador interessado pelo jogo. O argentino Jorge Luis Borges compôs o poema “Ajedrez” sobre o assunto. No romance A torre atingida por um raio, do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, a prosa é intercalada com movimento de peças. Em A defesa Lujin, Vladimir Nabokov usa o xadrez como metáfora para a vida – e vice-versa. De acordo com Enrique Vila-Matas, no romance Bartleby & Companhia, o artista plástico Marcel Duchamp foi, por um breve período, um escritor, e abandonou as letras para se dedicar ao jogo de xadrez. Na busca de algum exemplo brasileiro contemporâneo, tudo que consegui lembrar é que Ricardo Lísias é enxadrista e menciona o jogo em um conto publicado na Granta.
A fascinação dos escritores pelo antigo jogo de tabuleiro pode ter muitas explicações. Trata-se de um exercício radical de raciocínio e lógica, de um confronto entre dois intelectos para provar qual mente é mais capaz de realizar cálculos de possibilidades de movimentos e prever estratégias do oponente. Jogado profissionalmente, ainda há a questão do tempo: não basta pensar, é preciso pensar com a velocidade de um cientista maluco resolvendo uma gigantesca equação.
Mas, à parte de todos estes motivos óbvios para justificar o fascínio pelo xadrez, gostaria de levantar uma outra hipótese. Escritores são fascinados pelo jogo graças à performance do enxadrista. E não me refiro às estratégias de jogo, mas sim às caras e bocas que os jogadores fazem quando estão terrivelmente concentrados nas peças. Há um vídeo clássico (clássico, no mundo internético, significa: com mais de dois anos e de quinhentas mil visualizações) no Youtube que mostra Garry Kasparov realizando um movimento equivocado (clique aqui). Ele se dá conta em questões de segundos do erro e esbugalha os olhos, coloca as mãos na cabeça e exala um suspiro capaz de derrubar um castelo. Foi apenas um movimento de peça, mas o enxadrista o interpreta como uma sentença de morte.
A performance do gênio concentrado e transtornado é análoga à imagem fetichizada que foi criada em cima da figura do escritor. Em quase qualquer filme de Hollywood que apresenta um escritor como personagem, vemos o sujeito concentradíssimo frente à máquina de escrever, digitando empolgado, ou no silêncio violento dos que sofrem com a página em branco. Tal representação não está apenas nos filmes. Muitos autores, em entrevistas e palestras, parecem confirmar esta imagem. A solidão do escritor obcecado pelo fazer literário; o escritor desesperado pelo mot juste; o escritor que encara o inferno e o abismo na hora em que toca no teclado.
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Kasparov apareceu e foi recebido com uma salva de palmas. Não pude escutar o que ele disse no microfone, mas coisa boa não deve ter sido, pois logo em seguida Kasparov percorreu a mesa em formato de U, mexeu o peão de cada tabuleiro e… pôs outra pessoa para jogar no lugar dele. A plateia do lado de fora, sem acesso às conversas que ocorriam dentro do salão de vidro, não entendeu nada e ficou esperando até o fim pelo retorno de Kasparov. Alguém comentou: “Quem está jogando é o maior enxadrista brasileiro”. Pouco importava. A massa estava reunida para ver Kasparov, para ver a performance, para ver as caras e bocas, para ver a concentração e o drama. Não me informei dos motivos pelos quais o russo deixou um substituto jogar em seu lugar. A única coisa que Kasparov fez para compensar a inutilidade de minha ida até o centro foi passear pela mesa, olhando os tabuleiros e esboçando uma expressão que interpretei como “desprezo simpático”.
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A não participação de Kasparov foi muito frustrante para os porto-alegrenses ali reunidos, o que incluía meia dúzia de velhinhos que sempre jogavam xadrez nas praças da capital. Ouvi alguém comentar que Kasparov só exibe sua genialidade mediante um vultoso pagamento.
De certa forma, conhecer ao vivo escritores que admiramos também tem um quê de decepção. Imaginamos que escritores habitam a mesma posição do enxadrista profissional diante da máquina de escrever: obcecados, desesperados, transtornados. Muitos, de fato, devem viver essa papel. Não muda o fato de que não passa disso, uma performance, e que as caras e bocas provavelmente não alterarão o que será impresso na página de um romance ou o resultado de um jogo de xadrez.
Por fim, cabe encerrar este texto com uma curiosidade. Logo que Kasparov abandonou os vinte desafiantes, sentou-se para autografar seu livro. Sim, Kasparov, além de enxadrista, é escritor. Mais tarde, escutei o seguinte diálogo entre pessoas da plateia: “E o livro dele, é sobre técnicas de xadrez?”. “Não”, respondeu uma mulher, “é autoajuda”.
* Na imagem da home que ilustra este post: o enxadrista russo Garry Kasparov expressa seu transtorno ao errar uma jogada em partida contra o indiano Vishy Anand