Numa semana repleta de boas estreias, a mais importante certamente é Elle, o novo filme de Paul Verhoeven, que não tinha uma obra lançada por aqui desde A espiã, de dez anos atrás.
Primeiro trabalho do diretor holandês rodado na França, Elle é baseado no romance Oh…, de Philippe Djian e gira em torno de uma enérgica empresária, Michèle Leblanc, dona de uma produtora de videogames. Melhor seria dizer: gira em torno de Isabelle Huppert, a fantástica atriz que a encarna.
Michèle/elle/Isabelle está em cena o tempo todo, mas não se pode dizer que o espectador a compreenda e, muito menos, que se identifique com ela. Em suas relações com seus funcionários, com o ex-marido, com o filho feito de bobo pela namorada, com a mãe que compra a companhia sexual de um jovem, com vizinhos e amantes, ela mantém sempre uma opacidade irredutível, uma zona de sombra impenetrável – e é isso o que torna tão desconcertante o filme de Paul Verhoeven.
Na primeira cena, Michèle sofre um estupro brutal (e qual estupro não o é?) por um homem mascarado, sob os olhos indiferentes de seu gato, que alguns críticos viram como um duplo do espectador de cinema. Apresentada, portanto, na situação de vítima, ela não demorará a virar esse jogo, mostrando-se tirânica, para não dizer sádica, ao comandar sua equipe na criação de um videogame erótico e ultraviolento.
Subversão das fórmulas
Violência e erotismo, vítima e algoz, sedução e opressão, todos esses termos serão embaralhados e trocarão de sinal ao longo da narrativa. O talento do diretor (e da atriz) consiste em caminhar o tempo todo sobre a corda bamba da ambiguidade, sem dar ao espectador o conforto dos julgamentos morais e sem permitir que a história siga rumos previsíveis.
Depois de décadas nos Estados Unidos, talvez Verhoeven tenha voltado a filmar na Europa (seus dois longas anteriores foram feitos na sua Holanda natal) porque Hollywood já não assimilava mais sua complexidade, sua estranheza. Tropas estelares (1997), uma crítica feroz ao mundo globalizado sob a égide dos mais fortes, foi acusado de “nazista” por espíritos tacanhos que não alcançam o conceito de ironia.
Com sua protagonista amoral, com seu contínuo deslocamento de sentido, sua subversão dos gêneros e fórmulas narrativas convencionais, um filme como Elle seria impensável hoje no cinema americano de grande produção. A ironia suprema seria se ele conquistasse o Oscar de filme estrangeiro. Aliás, seria curioso cotejá-lo com o concorrente brasileiro a uma indicação, Pequeno segredo, também em cartaz. Mas talvez seja covardia.
BR 716
O título do novo filme do veterano Domingos de Oliveira não se refere a uma rodovia, mas ao apartamento da rua Barata Ribeiro, em Copacabana, onde o diretor morou nos anos 1960. Rodado em preto e branco, o filme é uma evocação sentimental e autoirônica da juventude de sua geração, com seu hedonismo, sua liberação dos costumes, sua busca meio destrambelhada de referências filosóficas e políticas.
É quase uma festa permanente, com as ocasionais ressacas inevitáveis, as brigas, ciúmes, traições e perdas. O filme alia o frescor e a liberdade que caracterizam o melhor cinema de Domingos, mas sem o desleixo de muitos de seus trabalhos recentes. É quase como se ele reencontrasse a verve e a inspiração poética de seus primeiros longas, em especial de Todas as mulheres do mundo (1967).
Um dos acertos de BR 716, ao lado da calorosa trilha sonora, é a escalação de Caio Blat no papel do protagonista Felipe, dono do apartamento em que tudo se passa. Mais que um alter ego, Blat é quase um remoçado clone do diretor, mimetizando de modo impressionante seu gestual e seu modo de falar. Uma bela atuação num belo filme.
Japoneses
Estão entrando em cartaz também, numa coincidência pouco usual desde que fecharam os cinemas da Liberdade, em São Paulo, dois bons filmes japoneses, o drama familiar Depois da tempestade, de Hirokazu Kore-eda, e o thriller Creepy, de Kiyoshi Kurosawa, também em cartaz no IMS-RJ. Mas sobre eles seria necessário desenvolver um texto específico. Quem sabe na próxima semana.