O cinema de Pernambuco venceu de goleada o Festival de Brasília, que acabou ontem (24 de setembro). Numa situação rara, Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes, e Eles voltam, de Marcelo Lordello, dividiram o prêmio de melhor filme. O primeiro ganhou ainda o prêmio do público; o de Lordello, o da crítica. Para completar, outro pernambucano, Daniel Aragão, levou o Candango de melhor diretor por Boa sorte, meu amor.
Já falei sobre o vigor atual do cinema pernambucano ao comentar aqui o notável O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho. Os vencedores de Brasília não só comprovam esse vigor, como ajudam a entender o que é que os filmes pernambucanos – ou ao menos os melhores deles – têm de tão especial.
Como a maioria dos leitores ainda não viu as obras em questão, aqui vai uma apressada e provisória sinopse de cada um deles. Verônica trata, grosso modo, da crise profissional e afetiva de uma jovem psiquiatra de hospital público (a luminosa Hermila Guedes), às voltas com seu pai doente, seus pacientes carentes e seus amores inconstantes. É, apesar disso, um filme libertário e solar, como sugere este pequeno teaser:
http://www.youtube.com/watch?v=OMVmUlJlG6o
Alice às avessas
Já Eles voltam narra a involuntária viagem iniciática de Cris (Maria Luiza Tavares, Candango de melhor atriz), uma garota de 12 anos deixada com o irmão na beira de uma estrada pelos pais. O que era para ser um castigo momentâneo – os dois irmãos brigavam no carro – se estende indefinidamente. Cris é uma Alice às avessas, que sai de sua redoma de classe média urbana para ser lançada abruptamente no mundo real e nas contingências da vida adulta. De novo, o frescor do olhar e a pulsão vital ganham a parada contra as condições adversas. Aqui, cenas do meio e do início do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=_golz1Pa-40
Existe alguma coisa em comum entre dois filmes tão diferentes, à parte o fato de terem sido feitos no mesmo Estado? A meu ver sim. Ambos têm a faculdade de mergulhar no destino individual de suas protagonistas, assumindo o seu ponto de vista, e de revelar de modo oblíquo, através do olhar delas, o tempo e a circunstância em que estão inseridas. As fraturas sociais, os atritos entre o arcaico e o moderno, entre o público e o privado, entre o campo e a cidade (em Eles voltam), a vertiginosa desfiguração de Recife (em Verônica), a convulsão de costumes e valores – tudo isso as personagens revelam à sua passagem, à maneira da emulsão fotográfica que faz a imagem surgir no papel.
Ambos são obras essencialmente cinematográficas, isto é, que se valem de uma organização precisa do espaço (os seres e objetos em sua relação com o ambiente) e do tempo (a duração de cada plano, o ritmo da montagem, as elipses) para expressar suas inquietações e sua visão de mundo. Da dialética entre aquilo que se mostra e aquilo que se oculta, entre o dentro e o fora do quadro, cada um deles extrai sua força e seu encanto. A ambígua Verônica, por mais que se exponha em depoimentos ao gravador, preserva um núcleo impenetrável que desafia o espectador à decifração, se não à fantasia. Já a inocente Cris parece descobrir as coisas junto conosco, desenhar o mundo a partir de seu próprio movimento.
Em comparação, um filme como A memória que me contam, de Lucia Murat, também concorrente, soa envelhecido, impotente, pois nele tudo se explicita e se resolve nos diálogos, até mesmo as dúvidas e inquietações dos personagens (militantes de esquerda sobreviventes dos anos da ditadura).
Observação social e expressão estética
Não que os diálogos não sejam importantes e que, bem usados, não possam ser puro cinema. Um exemplo é a magnífica sequência de abertura de Boa sorte, meu amor, em que um rapaz ouve de seu pai – um empresário oriundo da elite latifundiária – a história de sua bisavó índia, que vale por uma pequena aula sobre a opressão social e étnica na formação do Brasil “moderno”. Um substrato de realidade histórica que ancora o filme e contrabalança um certo pendor para a afetação que virá a seguir, como se percebe por este trailer:
http://www.youtube.com/watch?v=kqHM30Mujak
Os cineastas pernambucanos, em seus melhores momentos, conseguem a proeza – rara em nossa filmografia – de aliar a observação social e a expressão estética, ou melhor, de transfigurar a primeira na segunda, sem cair nem no esteticismo vazio, na fetichização da forma, nem na redução do cinema a um mero instrumento de propagação de ideias pré-existentes. Cinema, enfim, como busca, aprendizado, descoberta, revelação. Tomara que essa primavera tenha vindo para ficar.