Camarada Andrew Negroconti,
Barbaridade, aquela noite de ano novo. Lembro de acordar às cinco da tarde do primeiro dia do glorioso ano de 2011 no quarto de visitas de um amigo nosso em comum que chamarei apenas de Miguel do Amor, engolir um pouco de ar como se tivesse ressuscitado, sentir as pernas doendo da São Silvestre, erguer o tronco num tranco (desculpe a poesia ruim, nem todos nascemos poetas) espasmódico e rosnar, como aquele personagem do final do Kids: “Jesus Christ, what happened?”. Ninguém respondeu, pois eu estava sozinho (nosso amigo tinha viajado, lembre). De qualquer modo, a pergunta era retórica.
E véio, eu não lembrava de nada. Depois, enquanto consumia latas de Schweppes Citrus Light assistindo a um filme com a Naomi Watts na TV a cabo maravilhosa de Michael Love, foram aparecendo uns flashbacks. Uns clarões de um jantar lhano e urbano na residência do Antônio. Duas garrafas de Black & White. Uma breve discussão sobre a estranha paz proporcionada pelo celibato. Mineiras. Alguma espécie de boate. Fragmentos tão contundentes quanto elusivos. Com base neles, tenho uma história particular sobre o que aconteceu na noite de reveillon. Com certeza é muito diferente da tua.
Há evidência científica sólida de que as memórias são alteradas no cérebro cada vez que as evocamos. Não é só que a narrativa mental construída a partir dos registros se altera: os próprios registros se alteram. Cada vez que resolvo pensar naquela noite de ano novo e evoco as poucas peças do quebra-cabeça que sobreviveram à amnésia alcoólica, o desenho das próprias peças muda um pouquinho, quiçá muito. Em certo sentido, recordar é literalmente reviver.
Adoro a ideia de que, se vivêssemos mil ou dois mil anos, a recordação de experiências vividas há centenas de anos poderia se transformar numa coisa totalmente diferente da memória inicial. Temos indícios de que esse tipo de coisa é possível mesmo em curtos períodos. Eu, pelo menos, tenho. Te proponho um exercício. Vamos recordar seguidamente dessa noite de ano novo e bater nossas versões daqui a trinta ou quarenta anos (acredite, vai dar). Tenta não cortar relações comigo no meio do caminho. Vai ser divertido.
Vai ser como enterrar uma garrafa na areia e desenterrar anos depois, uma cápsula do tempo. Uma vez fiz isso com uns amigos, por coincidência numa noite de ano novo, na Praia da Guarda. Colocamos bilhetinhos e alguns objetos – colares, pulseiras, o que passasse pelo gargalo – dentro de uma garrafa de cinco litros de champanhe e enterramos. Acho que foi em 1998. Não faço a menor ideia do que está lá dentro, mas imagina encontrar e abrir aquele troço. Evidências contundentes de que houve um passado pessoal são sempre perturbadoras, porque o passado não existe e no fundo todos sabemos disso. Aí de repente surge um indício brutal de que essa historinha mentirosa que vamos contando e reescrevendo de fato existiu em algo que só pode ser o passado. Opa, como assim? Mas não, sabemos que não. Tudo que temos são cápsulas do tempo, e elas estão aqui agora.
Já leu um romance chamado Remainder, do Tom McCarthy? Acho que te falei desse livro uma vez. O protagonista sofre um acidente misterioso, perde a maior parte da memória e quando sai do hospital recebe uma fortuna dos advogados de uma empresa ou organização anônima, supostamente responsável pelo acidente, pra ficar calado pra sempre a respeito do que aconteceu. O cara volta pra casa milionário, apático, meio aleijado e semi-amnésico e vai vivendo uma vidinha de merda e sem sentido até que, numa festa, tem uma espécie de déjà-vu no banheiro da casa. Uma cena riquíssima de seu suposto passado, com sentimentos, cheiros, ruídos e incontáveis detalhes, volta com tudo e ele tem, pela primeira vez desde o acidente, a sensação de estar de fato vivendo algo verdadeiro.
O detalhe é que a cena experimentada não significa nada. Envolve rachaduras na pintura, cheiro de fígado frito entrando pela janela, um gato andando no telhado, uma pessoa praticando piano no andar de baixo etc. Parece totalmente aleatório. Mas ele fica obcecado com isso e resolve investir sua fortuna na recriação fidedigna daquele déjà-vu no mundo real. Contrata um indiano maluco pra ajudar ele, pois tudo tem que ser absolutamente perfeito, e a cena tem que ficar se repetindo sem parar, para ele poder entrar nela e vivê-la quando quiser. Atores contratados ficam fritando fígado e tocando piano numa minuciosa escala de horário, gatos são recolocados no telhado pra sempre estarem no lugar onde devem etc. Depois de um esforço hercúleo e milhões de libras, ele consegue reconstituir a cena da sua mente, mas imediatamente a coisa perde a graça. E a partir daí o personagem fica obcecado em reencenar outras cenas e sentimentos que eventualmente ressurgem de seu passado perdido.
De uma forma difícil de explicar, eu acho que esse livro é uma alegoria precisa da natureza disso que chamamos de passado. O passado é uma construção artificial que, vista de fora, é aleatória e sem sentido. Incapaz de encontrar suas cápsulas do tempo na memória, o protagonista do livro precisa construí-las do nada, e com um nível de detalhe absurdo, para conseguir dar sentido à existência após o acidente. Com o tempo ele não se contenta mais com cenas aleatórias. Passa a encenar experiências mais narrativas e perigosas, como um assalto a banco. Mas o que para ele é apenas uma encenação fiel de algo imaginado, para o mundo a seu redor é totalmente real. Sua encenação do assalto a banco imaginado é um assalto a banco, e as consequências dessa confusão entre encenação e realidade vão ficando cada vez mais graves.
(Desculpa, tu não merece essa metafísica barata. Estou meio tenso hoje, preciso decepcionar alguém e não sei fazer isso sem sofrer inutilmente, sou fraco. De qualquer modo, excelente livro, tenta ler.)
Vê se aparece lá na festinha amanhã no Clube Glória, vou tocar um Rudimentary Peni pra ti na pista (o mundo que se adapte). Quero ver os dedinhos pra cima, que nem na festa de casamento do Joca, esse marco da nossa amizade. E vou ficar o fim de semana aí, então uma madrugada está reservada pra gente virar o Mario Galaxy 2. Comecei o No More Heroes 2 agora, bom jogo.
Um abraço,
D. Galera
PS. Tu vem pra Porto Alegre no lançamento do livro do Sica?