Galera,
Eu pensei em uma porção de coisas a dizer sobre a narrativa da Steffany. Se eu não tivesse quebrado o dedo e demorado uma semana para responder, acho que teria feito umas colocações bem pertinentes. Mas acabei esquecendo tudo, claro. E eu nunca tinha quebrado um osso, era um ponto de honra, fruto de uma vida sem subir em árvores, andar de skate, tocar rock and roll e matar passarinho. No trabalho, ainda. Fui pegar um café, virei para dar bom-dia a uma colega e bati, de leve, o mindinho direito na quina da porta. Nem doeu, só foi inchando ao longo do expediente. Fiz um pouco de drama para valorizar, mas lá pelo fim da tarde começou a ficar feio. Quando cheguei em casa, meu dedo tinha virado uma bolota negra, um troço assustador, nem te conto porque sei que “tu” é sensível a essas coisas. E eu precisava escrever a coluna da Folha, fechar seu texto de orelha do Liberdade, sensação de mundo ruindo. Por sorte, contei com o apoio inestimável de minha mão esquerda, mais o dedão e o fura-bolo da direita, e acabei os textos.
Ainda assim, fiquei com a história do cachorrão na cabeça. Que coisa admirável, hein? E bateu com algo que venho pensando há umas semanas, mas que agora decidi a sério, que é acabar meu livro. Bicho, eu gosto de ficção, mas acho escrever um chute no saco. Não sei em que momento isso aconteceu; lembro claramente que eu gostava de escrever, passava um tempão nisso, tinha projetos, a porra toda. Cheguei a terminar duas histórias longas, quando estava no início da faculdade. Depois de ler a saga da Steffany, fui remexer esses arquivos, e que horror. Mas quer saber? Tem uma ou outra idéia engraçada ali, e um trecho inteiro que eu vou macaquear no livro. Juro que não lembro em que momento de minha vida eu parei, sentei em frente ao computador e escrevi uma história de sessenta páginas sobre um sujeito chamado Filadelfo Bermuda, mas eu devo ter me divertido. É um lance absolutamente épico, que atravessa gerações e gêneros, ambicioso pra burro, escrito numa prosa moderna, tente imaginar o fracasso. E digo isso sem um pingo de autocomiseração, o livro é ruim mesmo.
Mas fiquei orgulhoso de uns trechos. Tem um momento que o Filadelfo assume a identidade de um poeta concreto, ele precisa seduzir essa mulher que pertence a um círculo de concretos (chamado Círculo de Concreto), então deixa crescer um bigode, compra um colete, isso dura páginas e páginas, até que uma hora ele escreve um poema concreto para a tal Ilga
e consegue seduzi-la, mas eles entram numa discussão sobre a origem da poesia concreta, porque o Filadelfo defende que ela foi inventada no Paraguai, e que todos os expoentes estão auto-exilados num vilarejo perto de Assunção, eu li meio chutado, mas sei que no fim do capítulo eles vão ao Paraguai, atrás da Vila de Los Concretos, mas aí acontece um monte de coisas e a história perde foco e termina francamente ruim.
Na faculdade eu escrevi contos, não sei onde estava com a cabeça. São uns textos pretensiosos, forçados, ainda bem que só um foi publicado. Mas vou roubar nomes de personagens, duas cenas e uma oração, “No Ceará a terra treme todo dia”, que não sei como vou encaixar, posto que meu livro se passa a uma distância razoável de Fortaleza. Mas enfim. Quando já estava na editora, achei que era hora de escrever um livro. Primeiro decidi por uma longa pesquisa, algo que durou cerca de um mês. Depois, resolvi que ia inventar tudo, com base apenas em filmes e buscas rápidas na internet. De repente, escrevi umas vinte páginas, fiquei todo animado, mas o ritmo foi caindo e eu comecei a achar chato. Dolorosamente chato. Não conseguia escrever um parágrafo sem levantar, beber água, acender um cigarro, procrastinar.
Passei esses últimos anos bem contente de estar mexendo só no texto dos outros, e sempre que eu pegava um livro brasileiro muito bom, dava graças por não ter de escrever aquilo. Claro que no meu trabalho eu preciso escrever. Mas são textos impessoais, como uma orelha de livro, onde você segue uma técnica, para atender a uma função. E quando você mexe no texto de alguém, ou numa tradução, é dentro do universo daquele livro, não há nenhuma margem de criatividade, exceto nas soluções e sugestões que vai apontar. Você já editou livros e sabe como é bacana ficar indo e voltando ao texto, e mesmo não havendo sua personalidade impressa ali, o trabalho está de alguma forma presente.
Acho que foi isso que me impressionou no texto da Steffany. Posso estar vendo coisas, mas me parece que, dentro dessa aparente inocência narrativa, há um bocado de personalidade, algo bastante difícil de se realizar, mesmo que por intuição. Nesses últimos tempos, calhou que estou escrevendo bastante, por conta da Folha e do blog da editora (além da comunicação com os amigos). Fiquei apavorado no minuto em que aceitei a coluna, aliás, porque se a primeira desse um trabalho monstruoso, todas as outras seriam sofridas. Mas oquei, o assunto me interessa e descobri que dá para sentar e escrever uma coluna tranquilamente, é só largar o drama. De novo: gosto mais de escrever sob restrições ? de tamanho, tema, tom ?, apenas fica impossível conceber algo tão forte quanto Amor em cinco capítulos.
Uma vez eu estava conversando com um amigo, e contei a premissa do livro. Não lembro exatamente se ele achou ruim (acho que não), mas disse que não ia dar pé, porque o assunto é distante, e você precisa escrever sobre o que sabe, contar uns casos engraçados, sei lá. E perguntou sobre isso, sobre como eu ia colocar alguma personalidade no livro, se não tinha nenhuma relação com a história. Pior é que consigo identificar esse procedimento sendo bem realizado em vários livros, mas de fato não sei se tenho TÔNUS literário para alcançar o mesmo efeito. Amarelei ali mesmo.
E aí você vê um texto como o do cachorrão, cheio de personalidade e drama (não obstante a intervenção pedagógica), e percebe que ninguém aqui é mais criança. Chega de carro sem airbag, velhinho. No segundo dia da contusão reli todo o material, mais as anotações. Cortei um trecho e encontrei um nome definitivo para o protagonista. A coluna é legal e gosto de escrever para o blog, mas quero mesmo terminar essa história, parar de frescura. Estabeleci umas metas e tudo. Conto com seu apoio moral.
E pena que a gente só se viu brevemente na sua passagem por São Paulo. Mas eu estava arruinado mesmo, só ia pesar com meu dedo quebrado e reclamações e você sabe como é.
Abraços,
André