Choques que geram beleza

Correspondência

27.08.13

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O futuro é Kowloon

Oi, Cristina.

Pois é. Como eu disse na última carta, queria enveredar por outros, como se dizia nos anos setenta, estados de consciência. Passar ao largo dos assuntos relacionados às micaretas da cidadania que tomaram de assalto as cidades principalmente em junho, mas com esticadinhas em julho e agosto. Claro que é difícil deixar esse tipo de  assunto de lado, pois nos encurrala a cada minuto e aí suas especulações sobre mentes hackeadas, GPSs internos e uma possível telepatia via implantes cerebrais vão ao encontro de alguns aspectos da vida nos grandes centros (e suas periferias ou grandes qualquer coisa) urbanos niveladores, vulgarizadores, banalizadores de tudo e todos via consumo, via gincana social de obtenção da felicidade, via cutucada cotidiana na fera com consciência que somos.

Um deles é o choque (ou o revezamento, ou a superposição) entre os estados de consciência que têm a ver com nossas vocações mais arcaicas, estudadas pela psicologia evolutiva, e que têm a ver com aquela imagem popular da  clava-testosterona-masculina e  da caverna-progesterona-feminina e suas implicações na sobrevivência, nos jeitos, trejeitos, impulsos e condicionamentos de afetos e comportamentos. Choque entre essas vocações gregárias, desagregadoras e religiosas cujas batalhas visando dar sentido para a vida forjaram civilizações com ênfases humanas e não humanas. Já nos tratamos como detalhes insignificantes (não humanos) da terrível natureza, do violento cosmos, estando sempre jogados entre reinos naturais e sobrenaturais. Mas os humanismos e seus projetos morais, tecnológicos e de conquista planetária (encarando a vida ora como uma dádiva que devemos usufruir e conhecer, ora como uma condenação que tem na Morte a mãe de todos os sentimentos e motivações. Não estarei aqui nalgum instante, a televisão vai apagar) chegaram com tudo, e afirmar o ego do sapiens, mais do que diluir, virou a palavra de ordem. Somos ensaios mamíferos rumo a não se sabe o quê, movidos por surtos eróticos comunitários e rapinantes e uma vontade insaciável de recriar a natureza. Choques ente cavernas, religiões e aceleração genética e tecnológica habitam nosso corpo e nossa mente, encurralando, perturbando a já difícil corrida pela obtenção de rações razoáveis de afeto e amor e por conseguir melhorar de vida.

Minha querida Cris, depois do consumo a vapor, do consumo elétrico, do consumo eletroeletrônico, do consumo atômico (todos estão por aí soltos nas nossas vidas, também superpostos ou em revezamento) estamos entrando de cabeça (epa) no consumo nano, micro etc. Tudo como fluxo de informação, corpos humanos e não humanos. Computadores vão sumir, pois os processadores estarão camuflados em eletrodomésticos, em roupas, na pele, nos órgãos e por aí vai. Esse é um dos aspectos da tal aceleração tecnológica que, reza a lenda urbana atual, está transformando corpos e mentes em artefatos obsoletos. Ou no mínimo atrasados, pois a quantidade de informações e cadastramentos e processamentos está num ritmo tão acelerado e devidamente azeitado pela volúpia comercial, pelos colapsos, crises e caos estruturais da expansão globalizante industrial, empresarial, financeira, turística e militar modificando todos os aspectos da vida humana, todos os aspectos advindos das cavernas e das épocas religiosas onde éramos tratados como detalhes insignificantes da movimentação das esferas, todos os adestramentos, condicionamentos, refinamentos da fera com autoconsciência feitos pelos humanismos cristãos-greco-romanos mais ingleses, franceses, americanos, nazistas, liberais, comunistas, todo o nosso patrimônio moderno acelerado, perturbado, sacudido por urgências variadas. Urgência de adaptar regiões, populações ao processo de simbiose com máquinas, de sinergia via redes sociais, de sinestesia através de novas provocações cognitivas com novas aparelhagens, tudo sob o signo da saturação. Sim, saturação de riquezas, de misérias, de colonizações de todos os pontos vitais da humanidade e das possibilidades atmosféricas, geológicas,oceânicas. A Terra finalmente  transformada num quintal de próteses, e a profecia de Wiliam Blake que dizia que onde a natureza não fosse tocada pelo homem não teria valor nenhum está sendo mais que cumprida. Estamos chafurdando em proliferações, promiscuidades, poluições, purificações, pornografias, uma espécie de cinema exploitation de tudo, caixa de pandora sendo aberta em cada esquina.

Claro que é uma visão panorâmica e dita pra você que, como eu, é viciada em informação e investiga as possibilidades para esse sapiens em mutação. Mas fico me lembrando da pedra no meio do caminho, ou seja, dos oásis na aceleração hipermoderna, oásis rápidos como tudo. Penso nos tempos mortos, nas inércias e nas mediocridades, simplesmente. No cidadão imerso em preocupações e diligências de sobrevivência no dia a dia, que passa ao largo (ou pelo menos pensa estar informalmente imune a essas gigantescas e grandiosas movimentações da Humanidade) desses nivelamentos humano e não humano, das eugenias que estão chegando na maior satisfação, seres sendo escolhidos antes de tudo. Penso nesse papo furado de gente simples (ninguém é simples) e em todas as mediocridades chulas do dia a dia que parecem estar nos anestesiando, protegendo da avalanche que as engenharias computacionais, genéticas, químicas, neurológicas e de entretenimento provocarão ainda nas nossas vidas.

A pedra no meio do  caminho. Criança chupando um picolé numa fazenda no interior de Goiás sente uma presença. Torre de celular operadora? Satélite rastreador? Drone desgovernado? A multidão conectada? Tudo isso junto.

A vertigem dos espectros digitais chuta a porta de todas as percepções escancaradas pelo fim do publico-privado, do cultural-comercial, do doméstico-da rua, dos gêneros e suas funções, do estado que é mercado que é estado que e máfia que é informal que é legal que é ilegal que é terceirizado estado que é purgatório fiscal que é falido ou encostado ou que é mafioso que é PIB mundial portanto oficial e labirintos de negociações dão sentido pras vidas. Desvios amorosos, irracionalidades e inconsciências sempre perturbarão as eficiências, e eu digo pra você, Cris, que é o choque disso tudo que gera a beleza dessa atualidade nervosa.

Oásis de ignorâncias e vidinhas fontes de energia emocional surpreendentes ou fundos de poço tediosos, água parada de vidas zumbis a ponto de cometerem algum crime ou ficarem doentes de tanto conforto medíocre.

Passando ao lago da grande movimentação, do ensaio mamífero rumo a não se sabe o quê, cheio de vontade de recriar a natureza.

E você mandou bem demais falando das cavernas de Lascaux digitais, das nuvens mumificadas, da possibilidade de uma tempestade solar jamais aventada colocar-nos em xeque-mate num colapso internet. Mas baterias parecem estar prontas pra isso. Bunkers e bunkers. Gente equipada com HD. Quem sabe a criança chupando picolé no interior de Goiás? Ou um daqueles travestizinhos tailandeses boiando nalguma banheira. Velhos sendo clonados para pesquisa infinitamente.

Jorge Luis Borges disse que estamos escrevendo um gigantesco livro planetário. Hoje, com os polegares cheios de urgência cutucando miniteclados em smarts, estamos mesmo.

Pessoas com certas doenças serão escolhidas para serem habitadas por médicos aventureiros devidamente miniaturizados. Como falei no começo, choque entre humanismos e não humanos, trans-humanismos e desumanidades.

Você falou em Admirável mundo novo e Orwell. Os dois relacionados com espionagens e controles, e eu acho que 1984 perde direto pra Admirável pois o totalitarismo por ele retratado perdeu-se com o fim dos projetos comunistas centralizados hardcoremente. Já Admirável e seu projeto de sociedade segura, feliz e virtuosa está sorrateiro na sustentabilidade planetária.

A trapalhada de má fé da polícia inglesa, usando lei antiterrorismo pra pegar o tal brasileiro em Londres, só demonstra a confusão das espionagens em tempos de comunicação plena. Ou melhor, informação plena, pois filtros e critérios são mais que necessários pra que não corroboremos a situação de muita informação, pouco pensamento, muita velocidade e lentidão mental.

Será que aguentaríamos uma telepatia mesmo? Junto com os pensamentos vêm as emoções. Sentir dores e tristezas e ódios junto com pensamentos. Teria que ser aperfeiçoada essa parada, como dizem por aí.

Bom, vou terminando por aqui querendo falar novamente de tantas outras coisas, mas tudo que está nessa correspondência será usado e expandido no nosso livro, com certeza.

Demais conversar com você, estar com você.

Grande beijo e até breve aí na Pauliceia.

Fausto Fawcett

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