“Meu sentimento é o de que o primeiro fato da existência humana é o corpo”, disse David Cronenberg numa entrevista que me concedeu em 1999. E explicou: “Tudo o que fazemos e experimentamos é mediado pelo corpo. Somos nosso corpo, embora às vezes esqueçamos disso. (…) Mesmo quando achamos que estamos sendo muito cerebrais ou intelectuais, separados das coisas físicas e orgânicas, trata-se de uma ilusão. O cérebro também é um órgão, não? Para mim, a arte é sempre uma experiência carnal”.
Essas palavras me vieram à memória enquanto eu assistia ao extraordinário Um método perigoso. O filme me pareceu a realização cabal das ideias de Cronenberg. O diretor canadense chegou a seu centro, por assim dizer, colocando em cena os dois principais pioneiros da psicanálise, Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), com uma mulher no meio: Sabina Spielrein (Keira Knightley).
O corpo como campo de batalha
As imagens iniciais do filme, ainda na sequência dos créditos, são eloquentes, e balizam tudo o que virá a seguir. No princípio, o verbo: palavras manuscritas e datilografadas sobre o papel. Depois, o corpo convulso de uma mulher que se bate contra o vidro de uma carruagem. Primeiro a escrita, a tentativa de expressar o intelecto e ordenar o caos. Em seguida, o próprio caos, o indomável, o incompreensível.
Todo o filme será um desdobramento desse embate: de um lado, as forças vivas e por vezes obscuras da carne; de outro, a busca pela compreensão e controle dessas forças pelo discurso lógico, em última análise pela escrita.
Freud e Jung são as mentes em busca da resposta. Sabina é a pergunta. Claro que, a partir de certo momento, também ela busca o esclarecimento, mas seu corpo – incluindo o cérebro, órgão mais nobre – segue sendo o campo de batalha central desse drama terrível.
Um drama que se desenrola quase em surdina, em salas impecavelmente limpas, entre mulheres de vestidos imaculados e homens de barbas aparadas com esmero. Nesse cenário de ordem e assepsia, em que os próprios lagos, bosques e jardins parecem traçados com elegância e discrição, a fúria do corpo, quando emerge – em espasmo, em sangue, em lágrima -, assume um efeito tremendo.
Caminhos opostos
Se, diante dos impasses da psicanálise, Freud e Jung trilham caminhos opostos – o primeiro se aferrando a um rígido parâmetro “científico”, o segundo buscando outras fontes menos ortodoxas de saber -, Cronenberg e seu roteirista, Christopher Hampton, não chegam a tomar partido. Ambos, mestre e discípulo, parecem destinados à frustração. Ao expor as fraquezas de cada um – o desejo de controle de Freud, a pusilanimidade de Jung -, o filme não os condena, apenas os mostra como demasiado humanos. Não existem indivíduos acima das contradições da espécie. “Só o médico ferido pode curar”, diz Jung a certa altura. Na cena a seguir, a (im)paciente Sabina parece corroborar esse ponto de vista:
http://www.youtube.com/watch?v=X9eQwKAXVIs
Transformar a busca intelectual num drama eletrizante, quase um épico entre quatro paredes, não é tarefa fácil, e nesse aspecto Um método perigoso remete a outro filme igualmente notável, embora totalmente diferente, acerca dos inícios da psicanálise: Freud, além da alma (1962), em que Montgomery Clift encarna com brio o jovem Sigmund. Aliás, seria muito oportuno rever agora, à luz de Cronenberg, essa obra subestimada de John Huston, que está disponível em DVD. Aqui, para terminar sem catarse, a angustiante sequência do pesadelo de Freud:
http://www.youtube.com/watch?v=du8F1NzBiXU
* Na imagem que ilustra esse post: Viggo Mortensen e Michael Fassbender em Um método perigoso.