Diante de um massacre como o de Utøya, na Noruega, em que 77 jovens foram mortos em 2011 por um atirador ensandecido, o cinema tem várias opções: fazer da violência um espetáculo apoteótico e catártico, urdir um melodrama em torno das vítimas e suas famílias, investigar a “mente do assassino”, brandir um libelo político etc.
Utøya 22 de julho: terrorismo na Noruega, de Erik Poppe, não faz nada disso. A exemplo do que ocorre em Elefante (2003), de Gus Van Sant, a tragédia é vista aqui como que pelas bordas, de modo oblíquo. Sua narrativa é centrada num pequeno grupo de adolescentes, entre os cerca de quatrocentos que estavam acampados na ilha norueguesa de Utøya no dia do massacre. Mais exatamente, tudo é visto a partir do ângulo de uma única personagem, Kaja (Andrea Berntzen), que está em cena o tempo todo.
Em contraste com os travellings elegantes e o ritmo cadenciado do filme de Van Sant, porém, Utøya é todo rodado com uma irrequieta câmera na mão, num verdadeiro tour de force que simula, num único e longo plano-sequência, a duração real dos acontecimentos (a fuzilaria durou 72 minutos). Ou seja, não há nenhum contracampo, nenhum “plano de cobertura”. Para criar a sensação de veracidade, improviso e imprevisibilidade que emana da tela foi necessário com certeza um trabalho meticuloso de preparação e ensaio, numa espécie de coreografia do acaso e da morte.
Loteria sinistra
Sempre acompanhando Kaja, que tenta se proteger ao mesmo tempo em que procura a irmã desgarrada, a câmera percorre o acidentado terreno da ilha: barracas de camping, bosque, descampado, rochedo, praia, mar. Nunca vemos o atirador (só num brevíssimo relance, ao longe, na contraluz), mas sabemos da sua presença pelo som dos tiros, ora próximos, ora distantes. No mais, são garotas e garotos correndo desesperados e sem rumo.
Curiosamente, por conta de seu ascetismo estético, de que estão ausentes a música, as intervenções de estúdio e os efeitos de montagem, Utøya poderia se enquadrar nos requisitos do célebre Dogma 95, lançado há vinte e três anos pelos cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg, que posteriormente se afastaram desses preceitos.
O enfoque histórico-político de Erik Poppe não cai na armadilha do pacifismo genérico e despolitizado, de formulações do tipo “o ser humano não tem jeito”: em alguns diálogos, e sobretudo nos letreiros finais, diz com todas as letras que a carnificina foi cometida por um supremacista de extrema-direita, Anders Behring Breivik, descontente com a política do Partido Trabalhista Norueguês, atualmente no governo. O acampamento atingido era de jovens ligados ao partido, muitos deles de ascendência africana, árabe ou asiática.
Se não omite o claro contexto histórico-político, contudo, o filme se distancia de qualquer viés militante ou doutrinário. Seu objeto, no fundo, é a fragilidade da vida, a vulnerabilidade de corpos jovens diante de uma ameaça sem rosto e sem sentido aparente. A morte, nesse parque de horrores, assume quase o caráter de uma loteria sinistra: o tiro que poupa um atinge o companheiro ao lado. Para 77 meninas e meninos, “a matéria vida”, de tão fina, se rompeu.
Bertolucci
Muito se falou sobre Bernardo Bertolucci, morto esta semana aos 77 anos, e muito se falará ainda. Expoente da geração italiana posterior à “santíssima trindade” Fellini-Visconti-Antonioni, Bertolucci criou uma obra incontornável, mas não isenta de fraquezas e contradições.
De maneira bem resumida, é possível dizer que a psicanálise e a revolução social (ou a política, em sentido amplo) foram as duas linhas de força do seu trabalho, com os mais diversos graus de intersecção entre elas. Freud e Marx, em suma.
Em alguns momentos sua balança pendeu mais para o comprometimento político, como no grande épico 1900 (1976), monumental afresco da primeira metade do século passado na Itália, a partir do ponto de vista da esquerda. Ali, a par do vigor e da grandeza, há um certo esquematismo e mesmo a facilidade da caricatura em personagens como o fascista psicopata vivido por Donald Sutherland.
Nesse contexto, a outra grande epopeia do diretor, O último imperador (1987), assume quase o sentido de uma revisão crítica do arrebatamento político da juventude, numa visão mais serena e madura (conservadora, dirão os críticos) do caráter transitório das paixões políticas diante da profundidade e da diversidade dos sentimentos humanos.
Em outros momentos, a ênfase recaiu sobre a sexualidade, como em La luna (1979), dolorosa exploração do complexo de Édipo, ou em O último tango em Paris (1972), essa espécie de expressão cinematográfica dos versos de Manuel Bandeira: “os corpos se entendem/ mas as almas não”. A revelação de uma violência (mais psicológica do que física) cometida no set do Último tango por Bertolucci e Marlon Brando contra a então jovem atriz Maria Schneider manchou nos últimos anos a reputação desse filme, marcado desde sempre pela controvérsia e pelo escândalo.
Tragédia e barroquismo
Polêmica moral à parte (esta é uma coluna de cinema, não um juizado de condutas), talvez seja, no fim das contas, o filme mais visceral do diretor, aquele que se mantém mais vivo e pungente em sua junção de enredo trágico, modernidade narrativa, música envolvente (de Gato Barbieri) e atuações soberbas.
Há também, é claro, as tentativas de confluência das duas vertentes (a intimista e a política) em filmes como Antes da revolução (1964), O conformista (1970) e, numa perspectiva nostálgica e um tanto diluída, Os sonhadores (2003).
Filho de um poeta importante (Attilio Bertolucci), o cineasta sempre se alimentou da literatura, mas procurando distanciar-se dela mediante um extremado apuro visual. Em sua constante parceria com o grande diretor de fotografia Vittorio Storaro, Bertolucci tocou às vezes as raias de um barroquismo ornamental. Com O último imperador, essa estética suntuosa conquistou a sensibilidade do grande público e a aprovação do establishment cinematográfico, arrebatando nada menos que nove Oscars, algo um tanto insólito para um antigo companheiro de trincheira de Glauber Rocha e Jean-Luc Godard em defesa de um cinema esteticamente radical e sem concessões.