Na saída da gloriosa sessão de 2001, uma odisseia no espaço na tela grande do CineSESC, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um colega crítico brincou: “Não é nenhum Gravidade, mas…” A boutade me fez pensar no filme de Alfonso Cuarón à luz do clássico de Kubrick, e vice-versa.
Comecemos por Gravidade. O filme é, antes de tudo, um prodígio de tecnologia, talvez nem tanto pelo 3D, mas pela virtual abolição das referências de espaço habituais (em cima, embaixo, direita, esquerda). Cabeça para baixo, cabeça para cima, é tudo praticamente a mesma coisa, como nas sensações mais malucas experimentadas nos sonhos.
http://www.youtube.com/watch?v=nLtjGN2KMyA
Com essa qualidade de sortilégio e prestidigitação, poderia ser uma atração de parque de diversões – e não vai aqui nenhum demérito. Afinal, o que era o cinema em seus primórdios senão um espetáculo de feira?
Formato convencional
Ocorre que, no atual estágio da indústria cultural e da organização global do entretenimento, esse espetáculo precisa ser formatado segundo determinados parâmetros, que incluem a duração (uma hora e meia), a presença de astros de sucesso (Sandra Bullock e George Clooney), a criação de um entrecho ancorado em clichês melodramáticos (a heroína que perdeu a filhinha num acidente), o herói cool que não perde o bom humor nem à beira da morte, a música redundante e enfaticamente convencional, o final feliz.
Claro que seria possível especular sobre um eventual comentário do filme acerca da geopolítica atual, pois não deixa de ser irônico que a protagonista norte-americana se sirva de equipamentos russos e chineses para voltar para casa. Também se falou do percurso da heroína pelos quatro elementos: ar, fogo, água e terra, nesta ordem.
Mas tudo isso fica em segundo plano diante da montanha-russa de sensações (olha o clichê aí – essas coisas são contagiosas) desencadeada pelo filme, com sua sucessão de sustos, trombadas e rodopios.
Já em 2001, tudo foge à ideia de um formato convencional pré-estabelecido, a começar por sua duração: duas horas e quarenta minutos, com um intervalo preenchido por música para não perder o “clima”. Começa com vários minutos de tela preta, sem imagem nem palavras, só com silêncio e uma música (“Atmospheres”, de Ligeti) que parece surgir aos poucos da cacofonia, como a ordem a partir do caos, até que entram os acordes bombásticos de “Also sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, desde então associados indelevelmente ao filme. Estamos já no terreno do grandioso.
Dimensão metafísica
A estrutura narrativa é insólita, saltando os milênios, alternando cenas de dramaturgia naturalista a longos momentos sem diálogos, em que macacos contracenam com macacos, homens contracenam com máquinas ou máquinas contracenam com o cosmo, culminando em imagens puramente abstratas. Há buracos, elipses, zonas de sombra, enigmas não resolvidos, pontos sem nó.
http://www.youtube.com/watch?v=Ok32VyEQYYc
Há maravilha visual também em 2001 (o filme ganhou o Oscar de efeitos especiais), mas sua tecnologia ainda é, basicamente, da ordem do artesanal, dos recursos mecânicos e fotográficos pré-eletrônicos ou rudimentarmente eletrônicos. Parece até irônico hoje que um de seus encantos, o computador inteligente Hal 9000, tenha o tamanho de um sótão, no qual o protagonista humano (Keir Dullea) entra confortavelmente.
Por mais que Kubrick fosse fascinado pela ciência, em 2001 a tecnologia não está presente como mero fetiche ou espetáculo, mas é, ela própria, objeto de questionamento, como produto humano que aspira ao sobre-humano, à superação dos limites. Toca-se, assim, no metafísico, que para alguns tem o nome de sagrado.
Os personagens de Gravidade estão soltos na ionosfera. Os de 2001 estão sozinhos no infinito, perdidos na eternidade. Se Gravidade apela aos sentidos do espectador, 2001 apela ao espírito. Nisso reside sua perene grandeza.
Para encerrar, aqui vai o ápice da sequência da “aurora do homem”, uma das mais célebres e eloquentes da história do cinema: