Dez dias de vibração

No cinema

24.09.18

Foi bonita a festa, pá. O 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, encerrado ontem (23/9), foi uma edição histórica, não só pela qualidade dos filmes exibidos e pela temperatura dos debates, mas principalmente por trazer à luz o vigor e a diversidade de uma produção cinematográfica hoje ameaçada por todos os lados – pelo desmonte das políticas de fomento do setor, pelo desmonte mais geral do país.

Na competição principal houve de tudo: de um documentário sobre presas políticas da ditadura militar (Torre das donzelas, de Susanna Lira) a um thriller de mortos-vivos (A sombra do pai, de Gabriela Amaral Almeida), de uma sátira política (New Life S/A, de André Carvalheira) a um documentário com/sobre a cantora, compositora e dançarina Linn da Quebrada (Bixa travesti, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman).

 

Afirmação e resistência

Talvez não seja casual que Linn da Quebrada tenha sido uma das grandes estrelas da noite de premiação. A protagonista de Bixa travesti, que se apresenta como “bicha, louca, preta, favelada”, transmuta em força criativa os múltiplos estigmas que carrega na pele. O filme é uma celebração dessa força, que faz do corpo de Linn ao mesmo tempo um laboratório, um playground e um templo. E se há algo que resume o que houve no Cine Brasília nos últimos dez dias é a afirmação de vidas e identidades historicamente oprimidas, ocultas, silenciadas ou exterminadas: mulheres, índios, negros, gays, favelados.

Pela primeira vez, mulheres dominaram a seleção oficial: dos nove longas-metragens em competição, três foram dirigidos exclusivamente por mulheres (Los silencios, Torre das donzelas e A sombra do pai) e outros três tiveram a direção compartilhada entre um homem e uma mulher (Bixa travesti, Ilha e Bloqueio). Mulheres protagonizaram cinco dos nove concorrentes (A sombra do pai, Temporada, Luna, Torre das donzelas e Los silencios), sem contar Bixa travesti. Também pela primeira vez, salvo engano, dois longas eram de cineastas negros (André Novais Oliveira, de Temporada, e Glenda Nicácio, de Ilha).

Tudo isso seria inócuo se a seleção tivesse sido pautada apenas por critérios extracinematográficos, isto é, se tivesse cumprido meramente uma política de cotas. Mas a boa notícia é que a qualidade geral dos filmes foi excelente. O mais fraco, por conta do humor um tanto óbvio e previsível, foi o brasiliense New Life S/A, este sim talvez escolhido por motivos diplomáticos.

 

A força da delicadeza

É curioso que, num festival tão ruidoso e com discussões tão acaloradas e urgentes, em que o brado mais repetido foi “Ele não” – em referência a certo candidato presidencial que personifica tudo o que há de mais obscurantista –, os principais premiados tenham sido filmes que fazem da delicadeza e do silêncio a sua principal potência: Temporada e Los silencios.

O primeiro ganhou os prêmios de melhor filme, direção, atriz (a luminosa Grace Passô), fotografia, direção de arte e ator coadjuvante (Russo Apr). É, para dizer brevemente, a crônica do dia a dia de uma trabalhadora negra, uma agente de controle de endemias, num bairro operário de Contagem, na área metropolitana de Belo Horizonte. Mineiramente, como quem não quer nada, o diretor André Novais revela a grandeza dessa vida miúda, cujo trabalho anônimo consiste em vasculhar terrenos descuidados, objetos descartados, cacos rejeitados do mundo, para impedir as pessoas de adoecerem, enquanto ela própria peleja para não afundar. É um filme de amor e de luta, uma obra tão discreta quanto bela.

Sobre Los silencios escrevi aqui há uma semana e certamente voltarei a escrever quando estrear nos cinemas. Rodado na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, trata de refugiados da guerra e da pobreza em busca de um lugar para viver em paz com seus vivos e seus mortos. Ganhou o prêmio de direção e o da crítica (da Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine). [o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=gdOv7O_l4Cg ]

 

Terror social

Premiado em categorias relativamente secundárias – montagem, som, atriz coadjuvante (Luciana Paes) –, A sombra do pai furou um bloqueio tradicional contra filmes de gênero em festivais e reafirmou o talento da diretora Gabriela Almeida (de Animal cordial) para combinar os códigos e tradições do terror com uma visão crítica da sociedade.

Bixa travesti ganhou os prêmios do público, de trilha sonora e menção especial do júri, “pelo posicionamento e impactante apresentação da dupla Linn da Quebrada e Jup do Bairro”. O baiano Ilha, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, sobre um jovem traficante negro que sequestra um cineasta para que este filme sua vida, ganhou os Candangos de roteiro e ator (Aldri Anunciação).

Num festival com tantos concorrentes fortes, ficou sem prêmios o ótimo documentário Bloqueio, de Quentin Delaroche e Victória Álvares, que registrou no calor da hora a recente paralisação dos caminhoneiros e acabou por revelar um Brasil profundo e assustador.

Cabe esperar que todos esses filmes, e mais outros muito bons que estiveram nas mostras paralelas, encontrem oportunamente seu público e reverberem num espaço mais amplo a vibração que agitou por dez dias o Cine Brasília.

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